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Terminação de cruzeiro manuelino
Estimativa
25.000 - 35.000
Sessão 1
20 Julho 2022
Valor de Martelo
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Escultura em mármore
Representando cruz com terminações flordelisada e pietá
Verso com S. Jerónimo penitente aos pés do Crucifixo
Portugal, provavelmente Évora (1520-25)
84x34x26 cm
Categoria
Objectos
Informação Adicional
Nota:
Peça arrolada pelo Património Nacional Português
TERMINAÇÃO DE CRUZEIRO MANUELINO
Conjunto formado por uma cruz esculpida e por um capitel circular, correspondente ao topo superior de um cruzeiro executado nos inícios do século XVI em estilo manuelino. Estes dois elementos encaixam um no outro através de um par de espigões em ferro, substituindo, ou sobrepondo-se, ao sistema de encaixe original. A face inferior do capitel permite ver também o encaixe circular que fazia a ligação à coluna de sustentação, pelo que os referidos espigões serão fruto de intervenção posterior. Na época em que este conjunto foi produzido, os cruzeiros eram estruturas relativamente comuns, implantando-se junto às igrejas, nos terreiros e praças mais relevantes das vilas e cidades, bem como junto a encruzilhadas situadas fora do espaço habitado. Normalmente abrigados por uma cobertura singela, de dimensões variáveis, os cruzeiros erguiam-se sobre uma plataforma de dois ou três degraus e eram particularmente venerados no período pascal, favorecendo práticas devocionais coletivas de genuflexão ou de circunvolução, acompanhadas pela murmuração das ladainhas típicas desse ciclo litúrgico. Tendo em conta que este conjunto se encontra num estado de conservação irrepreensível, contrastando, por exemplo, com a chamada “Cruz de Portugal”, em Silves, também do período manuelino, mas feita em calcário, julgamos que este cruzeiro terá estado pouco exposto às intempéries e aos acidentes humanos, devendo estar resguardado sob o amplo adro de uma igreja. Com enormes terminações flordelisadas, a cruz apresenta no anverso S. Jerónimo penitente aos pés do Crucifixo, enquanto no reverso está representada a Pietá, ou seja, a lamentação da Virgem com Cristo morto no seu regaço. Esta cruz segue o modelo tipológico das cruzes processionais recortadas e vazadas que se popularizaram no primeiro terço do século XVI. Cruzes que também tinham terminações em flor de lis e que eram normalmente feitas em latão, por ser mais fácil de trespassar e perfurar. Não sendo o mármore alentejano um material adequado para fazer o mesmo tipo de entrelaçados e vazamentos filigranados, o que criaria um interessante efeito de luz e sombra mas fragilizaria irremediavelmente a peça, o escultor optou por deixar a indicação de uma cruz desse tipo, gravando ao longo dos braços da cruz um desenho em espinha de peixe, pontuado por bolhões agrupados em cruzes e rosetas ou apenas sugeridos em vagens gravadas superficialmente. Foi esta a forma encontrada de aproximar este trabalho em mármore leitoso ao figurino das ditas cruzes de latão dourado. Esta ligação é mais óbvia no reverso da peça do que no seu anverso, até porque nessa face o corpo da cruz está totalmente desobstruído, sem a figura de Cristo. Registe-se ainda que as cruzes processionais em latão a que nos referimos apresentam uma iconografia semelhante à que encontramos aqui, tendo normalmente o Crucifixo numa face e a Pietá na outra. Olhando com atenção para o anverso da cruz, percebemos que aquilo que vemos, na realidade, é uma representação dentro de outra representação. De facto, o corpo de Cristo pregado na cruz corresponde a um enorme crucifixo sustentado por uma pequena haste que S. Jerónimo segura na mão direita. O que temos perante nós não é a figura destacada, e ampliada, de Cristo na Cruz, como surge na cena do Calvário, mas sim um episódio da vida de S. Jerónimo, especificamente S. Jerónimo penitente ajoelhado diante um enorme crucifixo. Portanto, o que se representou aqui foi um instante das longas temporadas que S. Jerónimo passou no deserto, em penitência, fustigando-se e tomando sempre como modelo a figura de Cristo pregado na Cruz. Este santo, um dos Quatro Doutores da Igreja Latina, é representando, de resto, à imagem e semelhança de um simples monge, ou um anacoreta, ocupando o lado direito da composição. Note-se que o escultor acentuou claramente a tonsura do santo e as suas barbas alongadas, vestindo-o com um hábito simples, sem qualquer traço distintivo. Com a exceção do leão, que repousa junto aos seus pés, devemos sublinhar a inexistência de outros atributos normalmente associados à figura de S. Jerónimo, nomeadamente o chapéu cardinalício, o crânio que simboliza a vida efémera e a pedra que o santo usa para fustigar o peito visando esconjurar as tentações durante as suas longas vigílias no deserto sírio. Essa alusão ao deserto encontra-se no lado esquerdo da estrutura, onde o escultor aproveitou com mestria o reverso do manto da Virgem, construído em pirâmide, para nele esculpir uma série de dobras que, vistas deste lado, parecem mesmo escarpas rochosas, destituídas de qualquer tipo de vegetação. Desta forma engenhosa, o escultor consegue criar um cenário adequado, desértico, para envolver a penitência abnegada de S. Jerónimo, alimentada por longos jejuns e mortificações. No reverso, como afirmámos, encontra-se a representação da Pietá, ou seja, a Virgem chorosa que segura no regaço o corpo inanimado do Filho, depois de Cristo ser retirado da cruz. Tal como é típico desta cena, que se organiza num formato triangular, com o ângulo superior situado na cabeça da Virgem, há uma diferença nas dimensões das duas personagens presentes nesta cena, assumindo a Virgem uma escala superior à do Filho. A forma como Cristo se aninha no regaço da Virgem acentua a sensação de envolvimento do seu corpo pelo manto da Virgem, que funciona como uma autêntica mortalha funerária. Não obstante a qualidade da composição, atentese na forma desarticulada de representar os pés de Cristo, cada um virado para o seu lado, denunciando um escultor com recursos mais limitados, como aliás se comprova no uso de modelos ornamentais repetitivos representados ao longo dos braços da cruz, bem como nas dimensões desproporcionais das terminações flordelisadas. Essa dificuldade perde-se quando chegamos ao capitel, onde se
esculpiu um ondeante friso fito-zoomórfico com formas gordas e viçosas. Este friso, que percorre todo o perímetro da peça, está trabalhado dentro da caraterística rusticidade da arte manuelina, antes de esta ceder à ordem e clareza dos ornatos “ao romano”. O encadeamento das folhagens e dos galhos rugosos ao longo de todo o perímetro do capitel, que inclui também um dragão sem asas, acaba por criar uma sensação de fluidez e movimento contínuo à medida que giramos em torno do capitel, sem ser possível descobrir o seu começo ou o seu fim. A maior facilidade do escultor no tratamento deste capitel, em comparação com a cruz que se lhe sobrepõe, aponta para um mestre com vasta experiência na escultura arquitetónica manuelina, mas pouco familiarizado com a construção de temas historiados e com a composição da figura humana. À partida poderia pensar-se que essas diferenças justificariam uma autoria distinta para o capitel e para a cruz, até por haver alguma diferença na cor e nos veios dos blocos das duas peças e por causa do chanfro feito no ábaco do capitel, do lado da Pietá, que reduziu o espaço vazio entre a superfície do capitel e o arranque da cruz. Na verdade, apesar destas diferenças, não nos parece provável que se trate de dois trabalhos conjugados aleatoriamente. Entre outros aspetos, veja-se a forte afinidade ao nível do talhe de algumas formas, nomeadamente o “esse” deitado, carnudo, que encontramos tanto nas terminações floredelisadas da cruz como nas folhagens do corpo do capitel, que bem poderia ser usado, igualmente, para esculpir a forma de uma orelha humana. Além das caraterísticas formais do trabalho de escultura, notese também a filiação tipológica deste capitel na arte manuelina, nomeadamente por se tratar de um capitel circular com cesta comprimida, cilíndrica, e por ser rematado por um ábaco poligonal de seis faces côncavas. A presença de S. Jerónimo numa das faces do cruzeiro é particularmente interessante porque indicia que a peça estava associada a uma instituição monástica hieronimita. O material de que esta peça é feita, o bom mármore da região de BorbaEstremoz, aponta para uma execução no Alentejo, ainda que os dois blocos possam ter sido transportados para zonas mais distantes, nomeadamente para a Estremadura, e aí esculpidos. Estilisticamente, estamos perante uma peça do período manuelino, muito provavelmente realizada nos inícios da década de 1520. Nesse período, e nessa área, a Ordem de S. Jerónimo possuía a sul do Tejo o importante Mosteiro de Nossa Senhora do Espinheiro, nos arredores de Évora, um cenóbio fundado em 1457 e ao qual está associada a oficina do conhecido pintor luso-flamengo Frei Carlos, artista que em 1517 professava neste convento. Atendendo a algumas afinidades escultóricas com intervenções manuelinas realizadas em Évora, nomeadamente no Convento dos Loios (ex. portal da Sala do Capítulo), no alpendre do Palácio Cordovil, e, sobretudo, no próprio Convento do Espinheiro, designadamente os capitéis marmóreos do segundo andar do claustro, diríamos que a peça foi realizada por encomenda desse mosteiro e executada na mesma altura em que as galerias do claustro foram fechadas, no início da década de 1520, sob a orientação dos irmãos João Álvares e Álvaro Anes.
LUÍS U. AFONSO
HISTORIADOR DA ARTE, FLUL
Leilão Terminado