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IMPORTANTE VERSEUSE FRANÇOIS-THOMAS GERMAIN (1726-1791)
Estimativa
50.000 - 70.000
Sessão 1
15 Março 2022
Valor de Martelo
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Em prata francesa, séc. XVIII (1755-56)
Corpo em forma de pera com gomos espiralados estendendo-se para o bico
Bordo da base e da tampa com feixes unidos por folhas de acanto
Apoio do polegar em forma de voluta
Tampa apresenta um mecanismo de abertura para inserção do batedor
Pega em pau santo entalhado
Marcas de garantia de Paris em uso de 1750-1756 com punção FTG de François-Thomas Germain. Duas punções de garantia de Paris, letra K utilizada de (1750-1751) e a letra P usada de (1755-56)
(falta de tampa do bico)
Alt.: 26 cm
1180 g
Categoria
Pratas
Ensaio de Catálogo
Cafeteira ou chocolateira constituída por base circular e corpo bojudo e espiralado, sugerindo um movimento de torsão acentuado pela abertura pouco profunda de suaves caneluras, observáveis também no bico, curto e largo. A pega, em madeira, apresenta perfil contracurvado, enquanto a tampa, de secção circular, conta com um elemento, deslizante, que cobre o orifício destinado à introdução de uma batedeira.
HISTÓRIA
As informações acerca da história da peça, são escassas, à semelhança do que com frequência se verifica com o património móvel destinado ao uso civil em contexto doméstico, cuja existência nem sempre possui eco na documentação sobrevivente. Sabemos, contudo, que a obra, na posse dos descendentes da quinta Condessa de Ficalho, D. Maria Josefa de Mello (1863-1941), filha dos quartos condes, Francisco Manuel de Mello Breyner (1837-1903) e D. Josefa Brito do Rio (1840-1892), terá ingressado na família algumas gerações antes. A obra de François-Thomas Germain pode ter efectuado tal ingresso por via do muito viajado e abastado negociante Anselmo da Cruz Sobral (1728-1802), de quem descendia a mulher do segundo marquês de Ficalho (António José de Mello Breyner Teles da Silva, 1806-1893), D. Maria Luisa Braamcamp Sobral de Almeida Castelo-Branco de Narbonne-Lara (1812-1890), filha dos primeiros Condes de Sobral, descendente, por via materna do Duque de NarbonneLara (1755-1813), Ministro da Guerra de Luís XVI e ajudante de campo de Napoleão I, o que de per si poderia predispor para uma ligação a França. Não deve, porém, descurar-se a proposta (PENALVA & MAGALHÃES 2021, p. 131) de que a peça possa ter chegado às mãos da família através do primeiro marquês de Ponte de Lima, D. Tomás Xavier de Lima Teles da Silva (1727-1800), figura da primeira nobreza do reino que conheceu, ao tempo do governo do Marques de Pombal, sorte idêntica à dos Duques de Aveiro, detentores, como se sabe, de obras dos Germain, de que o centro de mesa, constante, na actualidade, das colecções do Museu Nacional de Arte Antiga (inv. 1827 Our.) é testemunho exemplar.
O QUE NOS DIZ A PEÇA: AUTORIA E DATAÇÃO
A observação analítica da obra permite reunir um conjunto de informação essencial para o seu conhecimento. Desde logo, a leitura das marcas (para a qual foi preciosa a colaboração de Michèle-Bimbenet-Privat) consente datar a peça e atribuir-lhe, inequivocamente, uma autoria. Com efeito, pode afirmar-se tratar-se de
um objecto realizado no contexto da oficina do ourives francês FrançoisThomas Germain (1726-1791), filho do também ourives Thomas Germain (1673-1748). Thomas havia trabalhado para Portugal no reinado de D. João V, não apenas para o soberano, mas satisfazendo igualmente encomendas particulares, sendo que dão eloquente testemunho de ambas as situações o escritório oferecido pelo rei Magnânimo ao cardeal D. Nuno da Cunha de Ataíde (1664-1750) e a escudela encomendada pelo cardeal D. João da Mota e Silva (1685-1747), ambas hoje parte do acervo do Museu do Louvre (inv. OA 9941 e inv. AO 6118) (VALE, 2016b e VALE 2018, pp. 72-73 e 119-122). François-Thomas Germain conservou o estatuto de ourives e escultor do Rei de França (1748), herdado de seu pai, que o fizera frequentar a Académie Royale de Peinture a fim de lhe assegurar uma boa formação na arte do desenho, competência tida como fundamental para o exercício da actividade profissional de ourives. Manteve em funcionamento a oficina, sita nas Galleries du Louvre, continuando a fornecer as principais cortes da Europa, de São Petersburgo a Lisboa (D’OREY 1991, GODINHO 2002), com peças notáveis (frequentemente executadas ainda com recurso a modelos paternos), até 1765, ano em que a falência inexoravelmente se abateu sobre François-Thomas, determinando o encerramento da oficina e o abandono das instalações no Louvre (BAPST 1887, BIMBENET-PRIVAT 2002 e sobretudo PERRIN 1993). A datação do objecto, para cuja aferição concorrem decisivamente as mencionadas marcas, revela uma situação curiosa, mas não exactamente rara: a peça integra componentes de dois momentos distintos. Com efeito, uma tampa, cujas marcas datam de 1750-51, foi utilizada em articulação com um corpo, realizado alguns anos mais tarde, 1755-56, sempre por François-Thomas Germain. Corresponderia esta utilização da tampa a uma intervenção numa cafeteira / chocolateira cujo corpo, por um qualquer motivo necessitou de ser substituído? Ou, alternativamente, tratar-se-ia esta utilização de uma tampa que remonta a 1750-51, de um aproveitamento de uma componente disponível na oficina do ourives parisiense quando, cerca de cinco anos mais tarde, teve de realizar uma cafeteira / chocolateira? Provavelmente nunca o saberemos. A presença das duas marcas de descarga (na tampa, de 1750-51, e na base, de 1755-56) revela, contudo, que desde um primeiro momento a peça se destinava a não permanecer em França, mas sim a ser exportada. Outra questão eventualmente destinada a permanecer sem resposta concerne a clarificação da tipologia e inerente funcionalidade da peça. Trata-se de uma cafeteira ou de uma chocolateira? Nem a morfologia, nem as opções ao nível da gramática ornamental contribuem para o cabal esclarecimento da questão. Com efeito, a forma do corpo, da tampa e mesmo da asa pode reconhecer-se tanto em cafeteiras como em chocolateiras, embora nestas últimas possa registar-se uma preferência pelas pegas rectas dispostas perpendicularmente ao corpo, todavia, tal opção – observável, por exemplo, na notável cafeteira do mesmo ourives pertencente ao Metropolitan Museum of Arte de Nova Iorque (inv. 33.165.1) – não é condição sine qua non. Por outro lado, o orifício que se observa na tampa, destinado à introdução de uma batedeira (para homogeneizar o líquido contido no interior), ocorre tanto em cafeteiras como em chocolateiras. Finalmente, não podemos contar com a plena colaboração do ourives ao nível das suas escolhas no âmbito da gramática ornamental, pois as figurações que comparecem junto ao bico não podem, inequivocamente, ser identificadas com bagas de cacau, nem tão-pouco com grãos de café, embora nos inclinemos para esta última possibilidade, por comparação com outros exemplares conhecidos (veja-se o referido a respeito por PENALVA & MAGALHÃES 2021, p. 131). A língua francesa resolve de forma simples a questão, recorrendo ao termo verseuse, genérico e abrangente, que corresponde a um vaso com bico, destinado a conter e servir líquidos e que, por comodidade, adoptámos para efeitos de designação da peça. Por ora teremos de conformar-nos com a dupla possibilidade quanto à funcionalidade do objecto e considerar igualmente a hipótese de que também a sua utilização fosse dúplice.
CONTEXTO
Cafeteiras e chocolateiras são objectos frequentes no âmbito da produção de ourivesaria civil europeia do século XVIII, estilisticamente enquadráveis no barroco e no rococó. Alguns dos exemplares mais interessantes, do ponto de vista da expressão da criatividade artística dos seus autores, identificam-se no âmbito da produção italiana e francesa. A obra em análise faz parte desse universo de peças, destinadas ao serviço da mesa, e muito em particular ao consumo das denominadas bebidas exóticas (chá, café e chocolate), as quais se tornaram crescentemente familiares ao gosto europeu, de tal forma eram apreciadas e o seu consumo se difundia. Assim, bules de chá, cafeteiras e chocolateiras, em múltiplas declinações morfológicas e veiculando diversas soluções decorativas, proliferaram nas mesas europeias de Setecentos. Importará assim consagrar alguma atenção às soluções morfológicas e decorativas que a peça ostenta. A presença de uma base uniforme, por oposição aos três pés, reconhecíveis em numerosos outros exemplares da mesma tipologia realizados pelo mesmo ourives – vejam-se, para além da já mencionada peça do Metropolitan de Nova Iorque, as chocolateiras e cafeteiras da baixela da Coroa Portuguesa, pertencentes ao MNAA (inv. 1872 Our., 1864 Our., 1865 Our. e 1866 Our.) e ao Palácio Nacional da Ajuda (inv. PNA 10586) –, é frequente na produção francesa coeva e anterior, bem como naquela italiana, tanto romana, como genovesa, particularmente versátil e inventiva no que à ourivesaria de uso civil concerne, ou até mesmo naquela de Augsburg (veja-se a cafeteira de Georg Klobe, de 1753-55, recentemente surgida no mercado, por exemplo). (Casa d’Aste Arcadia, Roma, Leilão Argenti antichi e da collezione, 28 de Setembro de 2020, Lote 163) Entre nós, e sempre no universo das peças importadas, evidenciando idêntica solução, pode referir-se a cafeteira, datável de 1736-1740, da autoria do ourives romano Antonio Arrighi (1687-1776), que foi, com toda a probabilidade, pertença do embaixador de Portugal em Roma e, desde 1740, bispo do Porto, D. Fr. José Maria da Fonseca Évora (1690-1752) (MONTAGU 2009, pp. 116-117 e VALE 2016a, pp. 194-195). Quanto ao dinamismo, assegurado pelas suaves caneluras espiraladas que se observa no corpo bojudo, deve notar-se que tal recurso tem provavelmente a sua mais recuada expressão no belíssimo jarro com tampa, datável de 1738-39, do ourives francês Louis Regnard (activ. 1733- 1759), que integra o acervo do Museu Calouste Gulbenkian (inv. 1125). A fortuna desta solução é mensurável pela significativa quantidade de peças que subsequentemente a veiculam. Assim, apenas em ambiente genovês, um centro de produção no qual a influência francesa é sem dúvida significativa, identificam-se, a partir dos anos quarenta do século XVIII e ao longo das três décadas sucessivas, inúmeras cafeteiras nas quais a mencionada solução de corpo bojudo animado por caneluras em torsão é replicada (BOGGERO & SIMONETTI 2011 pp. 145-156). Entre nós, pode referir-se, meramente a título de exemplo dessa produção, a cafeteira genovesa, de c. 1760, que, oriunda das colecções Bulgari, faz hoje parte do acervo do Museu do Caramulo (inv. FAL 112). Mas é na produção francesa e concretamente naquela de FrançoisThomas Germain que melhor eco encontra a cafeteira ou chocolateira em apreço, bastando para o efeito ter presente as já mencionadas cafeteiras e chocolateiras da baixela da Coroa portuguesa. O que se assume como mais relevante é afinal a notável qualidade da obra, em termos da sua concepção e execução técnica, tanto mais apreciável quanto se trata de um objecto não excepcional, mas sim decerto destinado ao uso corrente no contexto de um ambiente doméstico de Setecentos, não abdicando nunca da elegância e do requinte que conferem identidade à produção dos Germain.
Teresa Leonor M. Vale
Bibliografia: BAPST, Germain, Etudes sur l’orfèvrerie française au XVIIIe siècle. Les Germain, orfèvres-sculpteurs du Roy, Paris, J. Rouam Editeur, 1887 BIMBENET-PRIVAT, Michèle, Les orfèvres et l’orfèvrerie de Paris au XVIIe siècle, Vol. I, Paris, Association Paris-Musées 2002 BOGGERO, Franco, SIMONETTI, Farida, L’Argenteria Genovese del Settecento, Génova-Turim, Banca Carige-Fondazione Carige-Umberto Allemandi & C., 2007 D’OREY, Leonor, A Baixela da Coroa Portuguesa, Lisboa, Edições Inapa, 1991 GODINHO, Isabel, (dir.), A Baixela de Sua Majestade Fidelíssima, Lisboa, Instituto Português do Património Arquitectónico, 2002 MONTAGU, Jennifer, Antonio Arrighi, a silversmith and bronze founder in Baroque Rome, Todi, Tau Editrice, 2009 PENALVA & MAGALHÃES 2021~PENALVA, Luísa, MAGALHÃES, João, “A arte dos Germain: a baixela real e influências francesas na ourivesaria rococó em Portugal”, in Artis. Revista de história da Arte e Ciências do Património, Nº 8, 2021, pp. 125-133. PERRIN, Christiane, François-Thomas Germain Orfèvre du Roi, Paris, Hayot, 1993 VALE, Teresa Leonor M., Da Igreja e do Palácio. Estratégias e práticas de mecenato artístico dos cardeais joaninos entre Portugal, Itália e França, Lisboa, Scribe, 2018 VALE, Teresa Leonor M., Ourivesaria Barroca Italiana em Portugal: presença e influência, Lisboa, Scribe, 2016 VALE, Teresa Leonor M., “Que ce soit la chose la plus parfaite que l’on puisse exécuter. Les œuvres créées par l’orfèvre Thomas Germain pour deux cardinaux portugais conservées au Louvre”, in La Revue des Musées de France / Revue du Louvre, Nº 5, 2016, pp. 48-57.
Leilão Terminado