Leilão 132 Antiguidades e Obras de Arte, Pratas e Jóias

715

Importante biombo Nanban de duas folhas


Estimativa

Preço sob consulta


Sessão 3

26 Outubro 2023



Descrição

Representando cortejo de portugueses
Têmpera e folha de ouro sobre papel
Período Edo, primeira metade do séc. XVII

171,5x186,4 cm


Informação Adicional

Bibliografia:
Francesco Morena, “Japan The Land of Enchantment – Line and Colour”. Catálogo da exposição no Palácio Pitti, pp. 268-271.
Exposições: “Japan The Land of Enchantment – Line and Colour”, Palácio Pitti, 2012


O Cortejo Português

O episódio representado neste biombo (byobu) de duas folhas, retrata cinco personagens de pé, quatro adultos e um rapaz segurando um cão pela trela, que caminham encabeçando um cortejo. O primeiro, à esquerda, transporta uma cadeira, o segundo segura um grande para- sol com que sombreia o que caminha à sua frente, o qual, por sua vez, é precedido por outro que o olha atentamente. À exceção da figura segurando o para-sol, cujas feições são características do sudoeste asiático, todas as outras representam portugueses que, vestidos com bombachas, camisas justas e chapéus de formato cónico, partilham também características fisionómicas, tais como grandes narizes, olhos salientes, cabelos rebeldes e espessos bigodes.
Estas particularidades correspondem de facto à iconografia mais comum dos portugueses na arte japonesa. O tema dos europeus (namban, literalmente “Bárbaros do Sul”) entrou no repertório artístico nipónico no início do período Momoyama (1573-1615), para ser, a partir daí, amplamente absorvido na decoração de diferentes tipos de objetos, desde pinturas a objetos lacados, espelhos e netsuke. Após 1639, embora já sem portugueses a residir no Japão, os artistas locais mantiveram
ao longo do período Edo (1615-1868), a prática de os retratar como povos distantes e estranhos, satisfazendo deste modo a curiosidade dos japoneses e o seu desejo pelo exótico. No seu conjunto, esta arte de temas influenciados pelo ocidente, ficou conhecida como namban, sendo o termo também utilizado para referir em geral, as produções japonesas destinadas a ser especificamente exportadas para a Europa.
Os biombos pintados (namban byobu) constituem uma muito interessante faceta desta arte, tanto pela sua perspetiva histórica como artística. Considerando o grande número de exemplos existentes, estes objetos são um importante fenómeno na história da arte japonesa.
São conhecidos pelo menos noventa biombos, incluindo bastantes pares, bem como singulares e fragmentos (A Catalogue Raisonné
of the Namban Screens, Tokyo 2008). Geralmente, estes biombos
com Europeus são atribuídos à Escola de Kano, já que se identificam assinaturas de membros dessa família de pintores em pinturas namban, enquanto outras são estilisticamente próximas do estilo desses artistas. Contudo, os exemplos são tão distintos, que seria imprudente afirmar que todos terão a mesma origem.
Considerando a perspetiva iconográfica, reconhecemos alguns pormenores recorrentes e comuns a vários destes objetos. É, de facto, como se os pintores não tivessem somente recebido a sua inspiração pela muito provável observação dos portugueses, enquanto estes viveram livremente no Japão, ou através de fontes como as gravuras de Jan Huygen van Linschoten (1563-1611) na sua obra Itineraria (Amsterdão 1596; A. Curvelo in Encomendas: Os Portugueses no Japão da Idade Moderna - Namban Commissions: The Portuguese in Modern Age Japan, Lisboa 2010, no. 47-48), mas também pela influência de pinturas mais antigas sobre o mesmo tema.
O barco português, por exemplo, pode ser observado em muitas destas pinturas, quer à partida de um porto distante quer à chegada à costa japonesa. Os pintores nipónicos eram evidentemente competentes na representação de narrativas, tendo a capacidade de retratar acontecimentos que se seguiram à chegada dos portugueses, dentro do espaço que tinham disponível para o fazer. Como exemplo desta aptidão, poderemos mencionar a cena que nos mostra a entrada do cortejo português numa cidade japonesa, quase sempre recebido pelos missionários que aí se haviam fixado. Este tipo de cortejo era normalmente encabeçado pela figura de mais alto estatuto, seguida pelas restantes, cada qual transportando algo. A cadeira de tipo ocidental era quase sempre uma constante. O dignitário usava-a para repousar ou para participar num qualquer encontro. Com frequência, o grupo era precedido por um jovem acompanhado por um cão à trela, enquanto os carregadores incluíam servidores asiáticos de compleição mais escura.
A cena ilustrada no exemplar que apresentamos encaixa perfeitamente na descrição que acabamos de fazer, diferenciando-se exclusivamente pelo facto de se focar na frente do cortejo, pela ausência de um contexto (originalmente poderia ter tido um cenário que foi, entretanto, ocultado), pela dimensão das figuras, consideravelmente maiores do que as habitualmente retratadas em outros biombos com maior número de figuras e composições de maior complexidade.
Embora estas cenas sejam bastante comuns nestas peças, algumas – como é o caso do cortejo – são mais semelhantes à que aqui descrevemos, particularmente as representadas no biombo da direita no par do Atami MOA (no. 41 no catálogo de 2008), nos dois painéis que sobrevivem numa coleção privada (no. 42), e no fragmento no Museu Municipal de Osaka (no. 43). Baseado no agrupamento definido pelos curadores do catálogo de 2008, estes três exemplos, conjuntamente com outros quinze (nos. 36-53), englobam um núcleo iconograficamente homogéneo, tendo o seu protótipo sido identificado como o par pertencente à Coleção Imperial (no. 7). No biombo da direita deste último par, observa-se uma encenação semelhante, embora
sem a presença do interlocutor do dignitário, sem a figura asiática transportando o para-sol, aqui substituída por um português, e com a última figura transportando uma caixa e não uma cadeira. Ademais, as figuras são representadas a três quartos.
Não obstante estas divergências, identificam-se semelhanças estilísticas entre o par da Coleção Imperial e a nossa pintura, nomeadamente na representação dos personagens, maiores do que noutros exemplos conhecidos, e nos detalhes pintados, particularmente na decoração
do vestuário (Light and Shadows in Nanban Art. The Mystery of the Western Kings on Horseback, Tokyo 2011, no. 7). Deste modo, é plausível que o autor anónimo do nosso biombo possa ter selecionado um detalhe de um desses outros exemplos, reinterpretando-o para o seu próprio trabalho. A datação proposta para todos os biombos deste grupo, incluindo o protótipo original, é consensual e corresponde à primeira metade do século XVII. Na sua maioria, os biombos namban são formados por seis painéis, o que disponibilizava ao artista uma grande superfície de trabalho e, consequentemente, uma composição plena.
Há, contudo, outros exemplos de duas folhas representado cenas com estrangeiros (cat. I1.3).
Geralmente, as pinturas namban apresentam cenas complexas em cenários de grande detalhe, com muitas figuras e elementos descritivos. O biombo apresentado, com as suas características especificas é assim, uma exceção. Neste sentido, referimos também o exemplo no Museu
do Oriente, em Lisboa (cat. II.1), no qual o fundo dourado é claramente prevalente, criando a impressão de que as figuras flutuam no espaço. Desta forma, esses personagens apresentam-me menores do que aquelas no nosso exemplar.
Imponentes figuras europeias e japonesas, observando uma figura feminina a dançar acompanhada por músicos, preenchem os seis painéis de um outro biombo que pertenceu a uma coleção portuguesa (Art Namban. Les Portugais au Japon, Bruxelles 1989, p. 50, no. 17). De acordo com a inscrição que apresenta será datado de 1616. Sendo assim, a mais importante figura estrangeira seria Richard Cocks (1566-1624),
um inglês estabelecido em Hirado em 1613, após ter obtido permissão do xogum Tokugawa Hidetada (1579-1632), para se dedicar ao comércio, atividade que manteria até 1623.
Composições semelhantes, com personagens europeias isoladas, encontram-se também noutros objetos, tais como as lacas namban produzidas para o mercado japonês, tais como a caixa para alimentos e o polvorinho do Museu de Arte Antiga, em Lisboa. Sobrevive até hoje uma quantidade considerável de objetos com este tipo de figuras que ocupam boa parte da sua superfície, normalmente datados de entre finais do século XVI e meados do século XVII. Na pintura japonesa do século XVII, os artistas que se dedicaram às então emergentes temáticas Ukiyo-e, dedicaram-se também a experimentar com estes outros tipos de representações. Estas obras, retratando bijin (beleza feminina) e produzidas principalmente por artistas indeterminados, apresentavam uma figura de mulher sobre um fundo de folha de ouro. Nestas pinturas, os artistas atribuíam grande relevo á decoração do vestuário, conforme se pode ver no nosso biombo. Essas obras datam principalmente da primeira metade do século XVII.
Posteriormente, este tipo de organização espacial continuou a gozar de certo sucesso entre os pintores do “mundo flutuante”, mantendo-se até ao início do século XVIII. Contudo, nas obras mais tardias, o fundo dourado seria substituído pelo fundo neutro do papel ou da seda do suporte.
A qualidade da pintura no exemplar que descrevemos é evidente, o que se constata não só pela composição como um todo, mas principalmente pelos seus detalhes. As características fisionómicas das figuras são perfeitamente definidas com pinceladas firmes, que contribuem
para as suas expressões extrovertidas. Os padrões do vestuário são representados em policromia com grande mestria, e os trajes dos dignitários são enriquecidos a ouro em relevo acentuado, uma solução adotada para enfatizar o seu estatuto social. A variedade de padrões, e as suas características vagamente ocidentais, comprovam que os artistas tinham algum conhecimento do trajar europeu. A decisão de introduzir uma figura com capa, a típica capa negra portuguesa, é coerente com este conhecimento. Um outro motivo recorrente é a cruz Cristã, que aparece nas bombachas e casaco da figura que transporta a cadeira, na camisa do jovem, no notável para-sol e, principalmente, no centro do grande medalhão suspenso ao pescoço do dignitário.
Os portugueses e os espanhóis foram os principais responsáveis pela dispersão do catolicismo no Japão, desde o momento da chegada “acidental” dos primeiros, em 1542, através da ação dos muitos missionários que se instalaram nos anos seguintes, e pelo menos até 1612 quando Tokugawa Ieyasu baniu oficialmente, e lançou uma violenta perseguição ao Catolicismo, que terminaria em 1639 com o decreto de expulsão de todos os ocidentais, à exceção dos protestantes neerlandeses. Os portugueses, com grande perspicácia, combinaram
os seus interesses empresariais com a evangelização, tendo sido bem- sucedidos em ambas as frentes: atingiu-se um elevado número de convertidos japoneses, bem como muitas e muito ativas comunidades católicas, tendo-se também construído muitas igrejas.
O decreto de expulsão foi desastroso. Não só proibiu a religião católica, mas lançou também uma destruição sistemática de toda a iconografia contendo referências ao Cristianismo. Somente aos funcionários do governo japonês era permitido possuir e usar fumi-e, na medida em que os convertidos eram forçados a pisá-los, como gesto inequívoco da sua abjuração.
Os símbolos cristãos, principalmente a cruz, desaparecem simplesmente de toda a arte namban produzida durante o período Edo (1615-1868), no seguimento da promulgação de 1612, já que, deste modo os proprietários das obras não arriscavam punição. E se alguns símbolos cristãos se mantiveram, foram posicionados de forma a não ser imediatamente visíveis ou reconhecíveis.
Estas considerações históricas e iconográficas relativamente ao biombo que apresentamos, juntamente com a análise estilística das suas representações, levam-nos a propor uma datação da primeira metade do século XVII.
Em “Japan The Land of Enchantment – Line and Colour”
Catálogo da exposição no Palácio Pitti, Florença, 2012. Reproduzido com autorização do autor.



FRANCESCO MORENA
Especialista Arte Asiática



Leilão Terminado