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"Sargaceira (Minho)" (1936)

Almada Negreiros (1893-1970)


Estimativa

180.000 - 250.000


Sessão

7 Novembro 2017



Descrição

Óleo sobre tela
250x100 cm


Categoria

Arte Moderna e Contemporânea


Informação Adicional

Exposições:
"Exposição dos Artistas Modernos Independentes", Casa Quintão, Lisboa, 1936;
"José de Almada Negreiros - Uma Maneira de Ser Moderno", Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2017, Cat. pp. 344-345.


Dissertação sobre a Obra

Por Mariana Pinto dos Santos
Historiadora da Arte
Investigadora integrada IHA-FCSH/UNL
Curadora da exposição “José de Almada Negreiros: uma maneira de ser moderno”, F. Calouste Gulbenkian

A pintura Sargaceira (Minho) responde a um momento político e faz parte de um contexto artístico específico: é uma das imagens escolhidas para integrar um breve movimento, protagonizado por diferentes artistas, que tentou promover exposições independentes do Estado Novo. Fizeram-no organizando a Exposição dos Artistas Modernos Independentes, nas salas da Casa Quintão, em Lisboa (Rua Ivens, 32), inaugurada a 15 de Junho de 1936. A organização vinha assinada pelos «Amigos da Arte Moderna», e o pequeno catálogo dedicava a exposição aos já falecidos Amadeo de Souza-Cardoso, Santa Rita Pintor, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. Os outros artistas que expunham eram Sarah Affonso, Mário Eloy, W.S. Hatter, Júlio dos Reis Pereira, António Pedro, Hein Semke, Maria Helena Vieira da Silva, Arpad Szenes, Geza Szobel e Arlindo Vicente. A exposição era organizada pelos artistas que se queriam demarcar das Exposições de Arte Moderna organizadas pelo Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) do regime de Salazar, dirigido por António Ferro. A Exposição dos Artistas Modernos Independentes fora planeada para decorrer a par da exposição oficial, e a ela se sobrepor, reivindicando para si a modernidade que o salão oficial anunciava. As obras com que Almada participa são, além da Sargaceira (Minho), o Duplo Retrato datado de 1934-36 (onde se auto-retratou com a sua mulher, a pintora Sarah Affonso, e que pertence à Colecção Moderna do Museu Calouste Gulbenkian), e dois desenhos: Rapaz Dormindo, com a indicação no catálogo «desenho rejeitado para o Museu de Arte Contemporânea pelo Conselho Superior de Belas Artes», e Leitura. Sargaceira (Minho) representa uma figura feminina com as vestes protectoras com que o trabalho era feito e a grande rede da apanha do sargaço, alga usada para adubo, abundante na costa norte portuguesa. A recolha destas algas era função também das mulheres, que se protegiam do frio, da chuva e do mar com vestes semi-impermeáveis, mas mantinham a saia arregaçada e os pés e pernas nus, para andarem pela areia molhada e entrarem na água na zona de rebentação das ondas na costa. Almada retrata uma figura marcada pela dureza do trabalho, sem concessões a uma feminilidade adoçada. Em baixo à direita, um monte de sargaço apanhado ilustra o tema da pintura e contrasta em tons de verde escuro com o amarelo da túnica que a mulher veste. A obra de Almada, apesar de muito diversificada, é sempre antinaturalista e nesta pintura o tratamento dos temas dialoga com o (neo-)realismo, numa época politicamente intensa e controversa. A monumentalização escultórica de uma mulher do mar não deixa de sugerir um comentário ao papel dos artistas na sociedade. Alguma pintura realista estabeleceu um código de representação monumentalizada para as figuras do trabalho (como a de Diego Rivera, ou de Cândido Portinari, e também a de Júlio Pomar), código a que também não é alheio o neoclassicismo picassiano (e Picasso foi figura de referência maior para Almada Negreiros). É visível no quadro a representação desproporcionada das mãos e dos pés, que podemos encontrar na pintura neo-realista, assim exagerados para melhor evidenciar a sua função de ferramenta de trabalho, simultaneamente forte e frágil. A face da sargaceira por seu turno apresenta-se clássica: quase frontal, mas com uma sugestão de perfil no nariz delineado em ângulo recto. A expressão dos olhos é propositadamente tolhida por se encontrarem semicerrados e pela sombra projectada pelo chapéu, e é no lenço azul e na boca vermelha que se encontram os sinais da mulher por detrás da força de trabalho. O fundo é sucinto e sem horizonte, sugerindo neblina e tempo agreste. Céu e mar misturam-se num verde muito particular que encontramos noutros quadros do artista, nomeadamente no mencionado Duplo Retrato (1934-36), e que o sargaço amontoado repete, como se fosse um pouco de mar resgatado e deixado aos pés da sargaceira. A Guerra Civil de Espanha começaria no mês seguinte e Almada, que residira em Madrid entre 1927 e 1932, viveu com preocupação esses meses em que foi tendo notícias das perseguições e fuga de alguns dos amigos que lá deixara, bem como dos fuzilamentos que em breve se iniciariam. Pelo momento político que representa, pelo diálogo precoce com uma pintura realista que em Portugal só viria a afirmar-se na década de 1940, pelo contexto da sua apresentação pública em 1936, esta obra reveste-se de particular importância historiográfica. Além disso, o conhecimento do contexto de recepção desta pintura, ou seja, saber que a Sargaceira (Minho) foi exposta a par do Duplo Retrato (de Almada e Sarah Affonso, colecção Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian), infere na leitura possível de ambas as obras. Permite ver na representação do casal um gesto que procura a afirmação de independência de dois artistas — e não apenas um retrato familiar do pintor com a sua mulher —, artistas com a capacidade de dar a ver a força do trabalho de uma mulher do mar. Em 1936 na sala da casa Quintão estas pinturas eram mostradas lado a lado numa exposição que inaugurava uma semana antes da Exposição de Arte Moderna do SPN, na qual Almada recusara participar (tal como na primeira, no ano anterior). Note-se ainda que é no âmbito desta exposição que Almada faz a sua conferência Elogio da Ingenuidade ou as Desventuras da Esperteza Saloia, na qual afirma a ingenuidade como uma busca pela liberdade na arte. Por isso, Sargaceira (Minho) não pode deixar de ser vista como uma obra provocadora face à representação tipificada e pitoresca das profissões e das mulheres do povo promovida pela versão do modernismo defendida pelo Estado Novo por intermédio do SPN.



Leilão Terminado