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"O Anão Amarelo"

Paula Rego (1935-2022)


Estimativa

150.000 - 180.000


Sessão

31 Março 2025



Descrição

Acrílico, guache e papel colado sobre tela
Assinado e datado 78 no verso

106,5x88,5 cm


Categoria

Arte Moderna e Contemporânea


Informação Adicional

Proveniência:
Galeria 111, Lisboa;
Colecção particular.

Exposições:
Paula Rego, Galeria 111, Lisboa, Galeria Zen, Porto, 1978, Cat. Rep. p/b nº 8; "Histórias de todos os dias. Paula Rego, anos 70", Casa das Histórias Paula Rego, Cascais, 2023.


Ensaio de Catálogo

Histórias e Emoções Universais

Catarina Alfaro
Coordenadora de Programação e Conservação na Casa das Histórias Paula Rego/Fundação D. Luís I

Em 1976, Paula Rego propõe-se “ilustrar mais prolificamente os contos tradicionais portugueses ou integrar esses contos eternos na nossa mitologia contemporânea e experiência pessoal através da pintura”, como escreve no boletim de candidatura a uma Bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Assim que a bolsa lhe é concedida, começa a investigar contos e as respetivas ilustrações de autores de diferentes nacionalidades e períodos nas bibliotecas do British Museum e do Victoria & Albert Museum e nas bibliotecas nacionais de França e de Portugal.
Na vasta pesquisa que realiza entre 1976 e 1978 sobre os contos “de fadas clássicos”, Paula Rego destaca a escritora francesa Marie-Catherine d’Aulnoy (1650–1705). Mais conhecida como Madame d’Aulnoy, Rego considera-a “a maior narradora de histórias do seu tempo”, sendo ela a autora do conto que serve de referência directa para a realização desta obra, ‘Le Nain jaune’/ ‘O Anão Amarelo’. Este conto, que integra o livro ‘Contes de Fées’ publicado em Paris no final do século XVII, poderá ter sido consultado pela artista na Biblioteca Nacional Francesa.
Estabelecendo como plano de trabalho uma aproximação sistemática aos contos de fadas e aos contos populares de todo o mundo através do contacto próximo com as histórias a partir da sua matriz universal, o “inconsciente coletivo” – um conceito desenvolvido por Carl Gustav Jung –, a artista realiza, entre 1977 e 1978, várias obras que dão uma configuração atual aos contos tradicionais e contos de fadas a partir de um método de composição livre e automático. Esta obra integra precisamente um conjunto de trabalhos que concretizam plasticamente a intenção manifestada no seu pedido de Bolsa, quer pela temática abordada, quer pelo seu tratamento formal.
Nesta composição são identificáveis três personagens do conto ‘O anão amarelo’. O vilão da história, que se distingue pela sua face amarela, é representado no lado direito da tela, a elevar-se de um tronco de uma árvore onde habitava, tal como é descrito na história de Madame d’Aulnoy. A figura feminina desmembrada no centro da obra representa a rainha, que parte do seu reino em busca dos sábios conselhos da Fada do Deserto – que surge no lado esquerdo da obra – a fim de casar a sua filha, Toute-Belle, com o melhor pretendente. Durante essa viagem ao deserto, a rainha é surpreendida por um grupo de leões determinados a atacá-la. Só com a ajuda do Anão Amarelo a rainha consegue escapar, mas em troca da sua salvação, ele exige-lhe “a mão” da sua filha.
É num cenário irreal, sem tempo nem espaço, característico dos contos de fadas, que Paula Rego representa detalhada e literalmente a crueldade deste género literário, ao colocar a mão cortada da princesa, embrulhada com um laço, junto do Anão Amarelo que ao mesmo tempo, segura a rainha pelo véu, fazendo-a refém da sua malícia. Na interpretação visual do conto, Rego prossegue a experimentação formal a que se tinha proposto na sua candidatura à Bolsa da Gulbenkian. Apesar de ainda recorrer à “pintura-colagem” – embora com características técnicas e formais distintas das obras realizadas no início dos anos 1960 – do ponto de vista técnico, a construção da obra obedece aos princípios estabelecidos pela artista durante a década de 1970, nomeadamente a utilização de tinta acrílica em vez da tinta de óleo, que lhe garante um processo de trabalho mais rápido e permite sobretudo explorar uma paleta mais diversificada e vívida de cores que marcavam também as últimas tendências da moda londrina e as imagens da cultura pop. O grande plano de fundo é preenchido de amarelo, do qual se destacam figuras e outros elementos desenhados a guache ou a tinta acrílica, de contornos bem definidos, recortados e colados, e metodicamente introduzidos. Como resultado, a superfície pictórica torna-se plana, sem sombras nem perspetiva, por efeito da saturação da cor através da utilização de tonalidades fortes e contrastantes para definir formas e fundos. Podemos ainda apreciar outras características formais dominantes nas composições da década de 1970 em obras nas quais a artista se propõe “atualizar a configuração” dos contos tradicionais e de fadas. A estranheza de composição criada recorrendo à distorção e ao entrelaçamento dos elementos figurativos, que se agregam e transformam por meio de uma tensão elástica, sugere uma sensação de vertigem, de irracionalidade e onirismo. Todavia, esta composição – despojada quando comparada com outras obras realizadas em 1978 –, aponta já para as estruturas compositivas de obras dos anos de 1980 que apresentam um elenco reduzido a três personagens, posicionadas como se estivessem num palco cujo cenário não tem coordenadas de espaço nem tempo.
Nos mundos de fantasia e do sobrenatural dos contos encontramos histórias cruas e violentas que, ao cruzarem-se com a experiência pessoal da artista, são transferidas para a pintura através de uma linguagem simbólica própria. Mas, como defende Paula Rego baseando-se no seu conhecimento das teorias junguianas, estas histórias universais contêm uma simbologia essencial para a compreensão do comportamento humano, e a sua abordagem criativa através das obras de arte permite que os seus significados se dirijam diretamente aos instintos e emoções universais. Talvez por essa a razão permanece subjacentemente na sua obra a presença dos contos populares, materializada no modo como se estabelece uma relação indefinível entre o mundo real e o irreal.



Leilão Terminado