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Ressurreição de Cristo
OFICINA RÉGIA Cristóvão de Figueiredo (c. 1490-c. 1555) e Diogo de Contreiras (c. 1500-1563), Attrib.
Estimativa
80.000 - 120.000
Sessão 1
19 Outubro 2022
Valor de Martelo
Registe-se para aceder à informação.Descrição
Óleo sobre madeira de carvalho
Lisboa, c. 1530
Restauro pelo Atelier Edmundo Silva, Lisboa, ca. 1970
121x59 cm
Categoria
Pintura
Informação Adicional
Proveniência:
Colecção privada de São João do Estoril
Ensaio sobre o lote
Uma Bella Maniera
Vítor Serrão
Historiador de Arte
Professor Catedrático da Faculdade de Letras
ARTIS-IHA-FLUL
A Ressurreição de Cristo que se apresenta, proveniente de uma colecção privada de São João do Estoril (a), constitui um óptimo testemunho da arte produzida em Lisboa, sob iniciativa ou por inspiração régia, em pleno reinado de D. João III.
Tudo se ignora sobre a sua origem, mas é certo que fez parte integrante de um desmembrado retábulo de igreja, juntamente com outras cenas da Paixão de Cristo até ao momento inlocalizadas, sendo possível que fosse procedente de um extinto convento do Reino. O número 66 pintado a preto no reverso, juntamente com um lacre vermelho com marca de ignota possidência (b), remete para indicadores oitocentistas e sugere que a pintura (seguramente considerada, como era corrente no século XIX, um «primitivo português da escola de Grão Vasco») tenha integrado uma colecção privada de certa importância, não só dada a alta qualidade da peça como dada a quantidade de obras aí reunidas tal como se infere pelo número inscrito.
Continua a ser razão de estranheza, dada a prodigiosa qualidade do painel, de exímia execução, que ele se mantivesse completamente desconhecido até final do século passado por parte dos estudiosos de pintura antiga e que não fosse sequer referenciado na bibliografia respeitante a leilões de arte ou ao coleccionismo doméstico. Trata-se de um silêncio que surpreende e persiste por solucionar. A importância da peça foi reconhecida à data de um Seminário Internacional realizado no Instituto José de Figueiredo, em 1999, após análise preliminar feita pelo historiador de arte Dagoberto L. Markl e pelo signatário. A presunção de se tratar de obra precoce de Diogo de Contreiras foi de imediato considerada viável, dadas as afinidades de estilo, de modelos e de execução com outras pinturas suas bem identificadas, caso das tábuas de São Silvestre de Unhos (1537-1538), de Santo Quintino de Serramena (c. 1540) e de Santa Maria de Almoster (1542-45) (c). O modo de representar as cabeças (os soldados da zona inferior) e o tratamento caracterizado de mãos, por exemplo, encontram similitude nas referidas pinturas de Contreiras e permitem sustentar a atribuição de autoria de, pelo menos, parte substancial desta Ressurreição. Tal como escrevemos em 1999, «só a partir de então o painel mereceu ser estudado no contexto histórico-artístico da pintura portuguesa do tempo de D. João III e aproximado estilisticamente da ‘primeira época’ do pintor Diogo de Contreiras (c. 1500-1568), considerado por Joaquim Oliveira Caetano a personalidade-chave da geração de viragem do último Renascimento para a adopção do novo figurino do Maneirismo internacional» (d).
Trata-se de uma pintura de apurada concepção artística, realizada com elegância de pincel, com as figuras e demais valores plásticos, bem como as armas, as arquitecturas e os fundos, distribuídos por uma organização espacial que segue as regras da perspectiva renascentista. Acresce a esse exemplar efeito de ordenação a elegância com que tudo foi executado, tanto no desenho das figuras (sobretudo as dos soldados dormindo junto ao túmulo aberto, com suas armaduras de ornatos neerlandeses), como na transparência das atmosferas, no domínio das cores, na poesia do fundo de paisagem à esquerda (onde se assinala o pormenor do Noli me tangere, a aparição de Jesus ressuscitado a Santa Maria Madalena num jardim junto de uma fonte), e nos efeitos gerais de luz sobrenatural com que toda a cena é envolvida.
Se é certo que a pose de Jesus Cristo sobre o túmulo atesta plena fidelidade a um cânone de elegância bem ordenado e preciso, que encontra nas pinturas da Oficina Régia de Lisboa, dirigida por Jorge Afonso e prosseguida por seus seguidores, um largo acolhimento (veja-se, por exemplo, a Ressurreição de Cristo do Mosteiro de Jesus de Setúbal, atribuída a Jorge Afonso (e), a do retábulo da Sé do Funchal, saída da Oficina Régia (f), a do antigo retábulo do mosteiro da Santíssima Trindade, de Garcia Fernandes, 1537, hoje no MNAA, e a do Mosteiro de Ferreirim, de 1533-34, por seus sequazes Cristóvão de Figueiredo e Garcia Fernandes (g), já a excelência de desenho dos três soldados, o da direita com notável expressão e um gesto de surpresa, os da esquerda ainda abandonados ao sono, se impõe pela nova dinâmica, claramente maneirista, com que foram concebidos, com processos de modelação diferentes e uma ousadia formal que supera a normatividade para que parecia apontar o modelo compositivo de base. É especialmente bela a pose do soldado que dorme apoiado sobre o capacete, com uma belíssima expressão, e o desenho da mão em que apoia o rosto que se repete nas tábuas de Unhos e São Quintino. Por outro lado, a força da surpresa que o soldado à direita oferece tem qualidades de um quase-retrato!
Ou seja: a um modelo de tradição ‘afonsina’ que une de modo suave as influências do Norte da Europa (Bruges, Antuérpia), junta-se uma nova brisa italiana, patente na desenvoltura maneirista com que o modelo proposto foi, na prática, executado. Tal incongruência valoriza, mais ainda, a peça em apreço, ao presumir que possa tratar-se de uma encomenda temporã, ainda de cerca de 1530, fidelizada aos modelos da Oficina Régia, mas dada a pintar a um artista mais jovem dessa «escola» conhecedor das obras de Cristóvão de Figueiredo e Garcia Fernandes. Assim se percebe, entre outras coisas, porque razão o túmulo marmóreo, junto ao qual os soldados romanos dormem, inclua na sua decoração dois tondi clássicos com a representação de José lançado no poço, à esquerda, e Jonas a ser engolido pela baleia, o outro, que são precisamente os dois temas representados na célebre tábua da Deposição no túmulo de Cristóvão de Figueiredo (1522-1530), oriunda do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e exposta no Museu Nacional de Arte Antiga! A presença destes dois medalhões com passos do Antigo Testamento, além de reflectirem um discurso de associação da figura de Jesus Cristo a temas vetero-testamentários segundo o sistema de concordâncias bíblicas que o Humanismo cristão então tanto cultivava, mostra que o pintor que executou o essencial desta pintura conhecia os modelos da Oficina de Cristóvão de Figueiredo e se formara à luz da tradição dos chamados «Mestres de Ferreirim», ainda que com originalidade suficiente para se libertar de tais tutelas e afirmar os seus próprios estilemas e pessoalismos. O resultado é deveras deslumbrante: a ordem compositiva do Renascimento a dar lugar, na parte inferior com grande nitidez, as inquietações, caprichos e alongamentos formais do Maneirismo! Uma Bella Maniera por duas vias percebida, aliás, quer através dos fiamminghi romanizados do Norte (Jan Van Scorel, por exemplo), quer por via de uma doçura rafaelesca que, se já aparece aflorada em Garcia Fernandes, tem aqui um mais profundo sentido de apropriação.
Como já se disse, esta similitude da pintura com modelos com Cristóvão de Figueiredo (e, também, de Garcia Fernandes) «atesta, ademais, que Diogo de Contreiras frequentava, nos anos de início de carreira, a oficina do pintor do Cardeal-Infante D. Afonso, como de resto já era sugerido pela documentação conhecido e agora se comprova em termos de herança artística. A influência recebida não se esgota apenas nessa aparente coincidência da utilização de ‘citações’ e modelos comuns, (pois) também existem similitudes em utilização de adereços e armas, em cálidos efeitos tonais e em perspectivas desafogadas de atmosferas» (h).
Se Cristóvão de Figueiredo, que além de pintor examinador e avaliador era «debuxador de pintura» de reconhecido mérito (i), é uma referência forte no discurso desta tábua da Ressurreição, também a arte dos pintores régios Jorge Afonso (c. 1470-1540) e Gregório Lopes (c. 1490-1550) se mostra fonte de conhecimento do autor da peça que analisamos, bastando verem-se as tradicionais rovine usadas em vários painéis da ‘era manuelina’, e que vêm imediatamente à lembrança quando admiramos, neste quadro, o bem desenhado portal clássico, à direita, com seu fino capitel renascentista, com um putto no remate, e um ático com o Padre Eterno relevado. Neste caso, o artista terá recorrido a um gravado rafaelesco de Marcoantonio Raimondi. A estrutura do portal obliquado, à direita da composição, remete para idêntica solução como a que se patenteia na tábua de Garcia Fernandes proveniente do retábulo da igreja das Chagas de Vila Viçosa, de 1536, que representa As Santas Mulheres junto do túmulo vazio (j).
Esta Ressurreição documentará, assim, o início de carreira de um artista de excelentes recursos, antes de se autonomizar e adquirir justa fama. Algo que se constata também numa outra obra (mais tardia que esta), composta segundo o mesmo regime oficinal a partir de modelos ‘ferreirinescos’: o retábulo da Capela de São Bartolomeu da Sé de Lisboa (1537), onde a intervenção de Contreiras é, segundo Joaquim Oliveira Caetano, decisiva (k). Já no caso das armaduras, com capacetes, couraças e cáligas de derivação antuerpiana que se admiram nos soldados em baixo, com enrolamentos de grottesche clássicos e cabeças antropomórficas fantasiadas nos ombros, são elementos que ressurgem na obra de Diogo de Contreiras, tanto em São Quintino como em Santa Maria de Almoster, e que ‘passam’ depois para o seu discípulo de Santarém, Ambrósio Dias, e para o pintor do retábulo de Santa Cruz da Graciosa (Açores)...
No caso da tábua de Santa Maria de Almoster que representa a mesma cena da Ressurreição e está absolutamente documentada (a execução data de 1542-1545, estando a tábua, hoje, em colecção particular, trata-se de obra já plenamente maneirista no tratamento de modelos e valores plásticos, ainda que o pintor Diogo de Contreiras adopte um modelo compositivo que (só nesse aspecto…) é estritamente derivado da tábua aqui exposta – mostrando-se o artista, cerca de quinze anos após, fiel às suas raízes e a prosseguir experiências modelares usadas na sua «primeira fase»! Regressemos ao pormenor do soldado adormecido sobre o capacete: o desenho pessoalizado, a transparência da modelação, a força expressiva, encontram-se com toda a nitidez nas figuras das tábuas de São Quintino, sobre as quais Reynaldo dos Santos apontava justamente as ressonâncias do sfumato florentino, e o saudoso historiador de arte Adriano de Gusmão afirmava tratar-se do mais próximo de Jacopo Pontormo que existe em toda a nossa pintura quinhentista… Trata-se, sem dúvida, de uma pintura de excelência, cujos ‘problemas de arte’ por si levantados lhe acrescem significativa importância.
Agradecimentos: a José Mendes pelos exames laboratoriais à peça, a André Varela Remígio, e a Raul Sampaio Lopes, Joaquim Oliveira Caetano, Teresa Desterro e Pedro Flor pelos debates frutuosos sobre Contreiras (e os pseudo-Gregório Lopes e pseudo-Contreiras). De citar que a hipótese de uma colaboração Garcia Fernandes-Diogo de Contreiras neste quadro, foi defendida por Raul Sampaio Lopes.
(a) O conhecimento desta pintura deveu-se ao senhor Engº Luís Filipe Passanha Guedes, que no âmbito do Seminário Internacional Estudo da Pintura Portuguesa. Oficina de Gregório Lopes, realizado no então Instituto José de Figueiredo, em 1998, comunicou a sua existência, o que permitiu um início de estudo e a subsequente apresentação da peça na magna exposição Cristo, Fonte de Esperança (Porto, 2000).
(b) Foram baldadas até ao momento as tentativas de identificação heráldicas desse escudo, possivelmente (segundo o Prof. Doutor Miguel Metello de Seixas e o Doutor Lourenço Correia de Matos) de origem alemã.
(c) Sobre Contreiras, cf. Joaquim de Oliveira Caetano, O que Janus Via. Rumos e Cenários da Pintura Portuguesa (1535-1570), tese de Mestrado, Universidade Nova de Lisboa, 1996; idem, «O pintor Diogo de Contreiras e a sua actividade no Convento de São Bento de Cástris», Boletim A Cidade de Évora, nºs 71-76, 1988-1993; e Maria Teresa Desterro, O Mestre de Romeira e o Maneirismo Escalabitano, 1540-1620, Coimbra, Minerva, 2000; Pedro Flor, «A autoria do retábulo de Santa Maria de Almoster por Diogo de Contreiras (1540-1542)», Artis, 1ª série, nº 3, 2004, pp. 335-341; João Miguel Simões e Vítor Serrão, «O testamento inédito do pintor Diogo de Contreiras (1563)» , Artis – revista do Instituto de História da Arte, nº 9/10, 2010-2011, pp. 207-212; e Vítor Serrão, A Pintura Maneirista e Proto-Barroca, 1550-1700, vol. XI da colecção Arte Portuguesa da Pré-História ao Século XX, dirigida por Dalila Rodrigues, ed. FUBU e Jornal de Notícias, Lisboa, 2009.
(d) Vítor Serrão, «Ressurreição – Diogo de Contreiras», in Catálogo da Exposição Cristo Fonte de Esperança -- Grande Jubileu do Ano 2000, organizado por Carlos Moreira Azevedo e João Mário Soalheiro, Porto, 2000, pp. 138-139.
(e) Fernando António Baptista Pereira Imagens e Histórias de Devoção. Espaço, Tempo e Narratividade na Pintura Portuguesa do Renascimento (1450-1550), tese de doutoramento, Universidade de Lisboa, 2002.
(f) Cf. Fernando António Baptista Pereira, Joaquim Oliveira Caetano, José Alberto Seabra Carvalho e Vítor Serrão, «O Retábulo da capela-mopr da Sé do Funchal obra marcante do patrocínio régio do princípio do século», in As Ilhas do Ouro Branco. Encomenda Artística na Madeira. Séculos XV-XVI, catálogo de exposição, coordenada por Fernando António Baptista Pereira e Francisco Clode de Sousa, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 2017, pp. 36-53.
(g) Cf. o catálogo de José Alberto Seabra Carvalho (comissário), Primitivos Portugueses (1450-1550), exposição, Museu Nacional de Arte Antiga, 2010-2011.
(h) Vítor Serrão, in Catálogo da Exposição Cristo Fonte de Esperança -- Grande Jubileu de 2000, cit.
(i) Segundo documentação que Vergílio Correia, em Pintores Portugueses dos Séculos XV e XVI (Coimbra, 1928), deu a conhecer, os serviços do pintor Cristóvão de Figueiredo incluíam a tarefa de dar debuxos para retábulos que iriam ser pintados por outros, como sucedeu no tríptico de Valdigem, pintado por Bastião Afonso segundo fidelidade estrita ao modelo aprovado, da autoria de Figueiredo. No caso desta Ressurreição de Cristo, pode ter-se passado algo assim.
(j) Joaquim Oliveira Caetano, Garcia Fernandes e Diogo de Contreiras, dois pintores do Renascimento, e a Casa de Bragança, nº 7 da colecção Muitas Cousas, Fundação da Casa de Bragança, 2019.
(k) Joaquim Oliveira Caetano, in Catálogo da Exposição Garcia Fernandes, pintor renascentista, eleitor da Misericórdia (coordenação de Nuno Vassallo e Silva e Joaquim Oliveira Caetano), ed. Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 1998. Cf. também, no mesmo catálogo, Manuel Batoréo e Vítor Serrão, «O retábulo de São Bartolomeu da Sé de Lisboa. Garcia Fernandes numa obra de «parceria», pp. 86-103.
Leilão Terminado