Leilão 109 Colecção Conde da Póvoa - Quinta da Serra

903

“O Artista na infância”

António Soares dos Reis (1847-1889)


Estimativa

20.000 - 30.000


Sessão 3

29 Setembro 2021



Descrição

Escultura em pedra mármore de Carrara
Assinado e datado 1877

70x40x29 cm

Proveniência: Colecção da 3.ª Duquesa de Palmela

Exposição: As Belas-artes do romantismo em Portugal, Museu Nacional Soares dos Reis, Porto, 1999/2000


Categoria

Escultura


António Soares dos Reis

Nascido em 14 de Outubro de 1847 na freguesia de S. Cristóvão de Mafamude em Vila Nova de Gaia, António Soares dos Reis provinha de uma família humilde. Um dia, ou porque viu os seus desenhos ou pequenas esculturas, ou ainda porque António desenhara nas paredes caiadas do muro de sua casa, o seu vizinho, Diogo de Macedo achou-o com jeito para as Belas Artes. Desde a infância até ao último dia da sua vida a sua existência foi condenada pela tristeza e pela depressão. Taciturno e acabrunhado, são adjetivos recorrentemente usados para narrar o grande escultor até se reverterem numa verdade irrefutável. Aparentemente a realidade era um pouco diferente e a imperecível depressão da qual sofria foi-lhe atribuída pelo tempo e não pela verdade. Era um homem com algum sentido de humor (bom ou mau, isso é questionável). Gostava de se reunir com os amigos, cantar, tocar violão e entrar em brincadeiras com os que lhe eram mais próximos, gostava de fazer uma boa piada e sabia aceitar as que eram sobre si. Só havia dois temas de que não gostava de falar: religião e política. Era cristão e católico – como o afirmou na altura da sua morte – mas era quase indiferente aos cultos religiosos, teorias e dogmas da igreja. Reconhecia todas as crenças e era contrário a tudo quanto restringisse ou cortasse a liberdade de consciência e o direito de opinião. Em matéria política, apesar de lhe ter uma grande e espontânea aversão, seguia a mesma ordem de ideias e os mesmos princípios de liberdade, de justiça e moralidade. Mas, a vida não era apenas trabalho e nos inícios da década de 1880 o escultor apaixonou-se pela jovem Amélia de Macedo, neta do já referido Diogo de Macedo e o casamento aconteceu a 15 de Julho de 1885, apenas quatro anos antes do seu suicídio. No ano de 1888, saiu de Lisboa – onde tinha ficado a saber que Elisa Leech não aprovava o busto que havia feito de si – e regressou a Gaia para daí escrever uma carta à Academia Portuense de Belas Artes, datada de 2 de Julho, a manifestar o desígnio de deixar a regência da cadeira de escultura. No início de 1889 a sua doença dá sinais de agravar, passando a padecer de grandes agitações mentais e de irritabilidade. Constantemente isolado, há uma aparente melhoria e no dia 15 de Fevereiro reúne-se com os seus amigos para apresentar o seu projecto para Monumento ao Infante D. Henrique. Na manhã seguinte levantou-se e foi dar alguns retoques na obra em que trabalhava na altura, o Busto de Fontes Pereira de Melo para a sede da Associação Comercial do Porto. Pouco depois, a sua mulher escutou um estrondo na sala do rés-do-chão, semelhante a uma detonação, e correu para ver o que se passava, onde encontrou o marido, em pé, a limpar a pistola e a justificar-se que se havia distraído e ela disparara acidentalmente. A seguir, dirigiu-se para o seu escritório, numa das paredes escreveu “Sou cristão, porém nestas condições a vida para mim é insuportável. Peço perdão a quem ofendi injustamente, mas não perdoo, a quem me fez mal”, e suicidou-se com um tiro na cabeça.

Formação artística

A primeira fase da educação de Soares dos Reis foi feita na Academia de S. Lázaro (conhecida por Academia Portuense de Belas Artes), onde como actividade extra-curricular, teve a oportunidade de executar ensaios em escultura sob a direcção de António Luís da Silva Cruz, o que lhe proporcionou a prática que não encontrava na Academia. O grande impulso na sua formação como escultor deu-se aquando da sua ida como pensionista (1867-1872) para Paris e depois para Roma onde adquiriu o ensinamento dos mestres mais conceituados da época. Foi durante estes anos que, através das visitas a igrejas, jardins, praças, museus e ruínas, teve a aberta ao contactar com as mais excelsas criações artistas da História da Arte, não só em Paris e Roma como nas várias cidades europeias que visitou. A 31 de Agosto de 1867 foi aprovado, por unanimidade, ao pensionato em Paris. Embora não tenha havido mais concorrentes à bolsa de escultura, o jovem estudante teve que se submeter à realização de várias provas, as quais consistiram na modelação de uma cabeça pelo natural (o Busto de Firmino), uma figura de tamanho natural (Academia), um baixo-relevo (Mercúrio adormecendo Argos ao som de uma Flauta) e um esboceto sem modelo, feitos em gabinete fechado. Sabe-se que chegou a Paris no dia 6 de Novembro desse ano, e por lá ficou durante três anos (até ser obrigado a voltar a Portugal devido ao início da guerra franco-prussiana). Os seus principais objectivos em Paris eram dois: ser admitido no atelier do escultor François Jouffroy (1806- 1882) e ser aceite na École Imperiale et Speciale des Beaux Arts (EISBA). Ambos foram difíceis de alcançar, mas enquanto o primeiro demorou cerca de três meses, o segundo só foi concretizado um ano após a sua chegada. Como os ateliers dos mestres pertenciam à EISBA, para que um aluno estrangeiro fosse admitido, era imprescindível a autorização do superintendente da escola. No caso do jovem Soares dos Reis, o Ministro de Portugal em Paris fez chegar à EISBA um pedido para que fosse admitido no atelier do escultor Jouffroy. Mas a resposta foi negativa pois o número de lugares já́ se encontrava preenchido. Para resolver este problema Soares dos Reis acabou por pedir a intercepção do escultor francês junto da EISBA e a partir do dia 14 de Janeiro de 1868 Soares dos Reis começou a frequentar o atelier. Só em Abril de 1869 é que foi admitido na EISBA onde conseguiu um excelente aproveitamento tendo obtido várias distinções, bem como a admiração de mestres e colegas que lhe chamavam Voleur de prix, “Ladrão de Prémios”, uma expressão brincalhona, mas ao mesmo tempo admirativa. Nas disciplinas de Desenho foi aluno do pintor Frédric Adolphe Yvon (1817-1893), na escultura do já referido Jouffroy e em Filosofia da Arte de Taine. Foi durante este período que executou obras como Le tireur d’ Épines (1869), hoje no acervo do Museu Nacional Soares dos Reis (Nº Inv. 17370.01 TC) e o Pescador em bronze (1870) que também se encontra no acervo do mesmo museu (Nº Inv. 17371.01 TC). Quando regressou a Portugal, devido ao irromper da guerra francoprussiana, demorou-se em Bayonne à espera do comboio, e durante esse tempo desenhou a paisagem que o seu olhar alcançava num cartão de visita que trazia consigo. No entanto, vivia-se um período de conflito bélico e esteve, por breves horas, preso na cadeia de St. Esprit. No verso do referido cartão, escreveu: Vista da ponte de Bayonne. 13 de Agosto de 1870. Croquis pelo qual estive preso. Permaneceu por dois meses em Vila Nova de Gaia e depois partiu, novamente como bolseiro, para Roma onde chegou a 17 de Janeiro de 1871. Foi nesta cidade que iniciou uma das suas principais obras “O Desterrado” que, depois de modelada, deixou em Roma, partindo para visitar outras terras italianas. Nos últimos meses daquele ano foi-lhe comunicado que as verbas dadas aos pensionistas, que se encontravam no estrangeiro, iam ser interrompidas e que devia retornar a Portugal até ao fim do mês de Outubro. Soares dos Reis já tinha empregado tudo o que recebera no mármore para a realização de “O Desterrado” e não o conseguia concluir em tempo útil para executar as novas indicações. Entrementes foi vivendo conforme pode, com o pouco que lhe restava, até que, lhe confirmaram a prorrogação da estadia em Roma, recebendo novos subsídios para a termo da obra final como pensionista. António Soares dos Reis, tinha um talento que precisava ser aperfeiçoado, e esse foi o principal papel do pensionato na sua vida. Com o fim do período do pensionato regressou a Portugal, tendo chegado a Vila Nova de Gaia nos primeiros dias de Setembro de 1872. Pouco depois apresentou “O Desterrado” como prova para o aproveitamento dos seus estudos ao abrigo da bolsa de Estudo. Meses depois, a 23 de Dezembro, foi nomeado Académico de Mérito pela Academia do Porto. No ano seguinte instalou-se no que foi o seu primeiro atelier, no nº 99 da Rua das Malmerendas, actual Rua Dr. Alves Veigas, onde se manteve até 1875. Foi neste espaço que realizou ainda algumas das suas primeiras obras de relevo: Cabeça de Negro, Saudade, O Artista na Infância (obra em homenagem a Grão Vasco) e a encomenda de uma Nossa Senhora da Vitória (que não foi bem recebida pela Igreja). O reconhecimento e a crescente valorização da sua obra valeramlhe, a nomeação como Académico de Mérito pela Academia de Belas Artes de Lisboa, e foi nesse mesmo ano de 1876 que apresentou o gesso da obra que agora trazemos a leilão, na exposição de Belas Artes de Lisboa. Sobre essa apresentação é relatado na revista Occidente de 1 de Outubro de 1878 “... recebendo ahi um justo brado de admiração. Era a revelação de um formoso talento, de uma d’essas vocações raras e privilegiadas que não são vulgares em todos os tempos e em todos os paizes. A par da profundeza da concepção manifestava-se um grande poder de execução no escopro que assim fazia ressaltar do mármore, em vigorosos ímpetos de vida, uma musculatura animada e palpitante, traduzindo n’ um sorriso ingenuo e infantil, a intima sensação de um espirito predestinado.” no mesmo texto também podemos ler “a infância do artista prova bem que taes lições não inúteis para o artista portuguez”. É nesse mesmo artigo que ficamos a saber que esta escultura em mármore pertencia à 3º Duquesa de Palmela e que tinha acabado de obteve uma menção honrosa na exposição Universal de Paris de 1878, informação que mereceu figurar na capa, da já supracitada publicação, através de num desenho, assinado Alberto, executado a partir de uma fotografia desta escultura.

A obra do artista

António Soares dos Reis foi um marco na escultura portuguesa do seu tempo. A declaração parece um cliché, mas olhando para o cenário da escultura concebida em Portugal na 2ª metade do século XIX, apuramos que o artista fez parte de um núcleo muito limitado, do qual ressaltam pouco mais nomes do que o de Vítor Bastos e Alberto Nunes. Reconhecemos que teve o seu trabalho oficialmente consagrado quando Auguste Rodin (1840-1917) correu a beijar-lhe as mãos e lhe teceu consideráveis enaltecimentos. Quando aquele que é estimado, internacionalmente, como um dos máximos ícones da escultura de todos os tempos eleva desta forma um quase anónimo escultor de uma pequena vila do Norte de Portugal, não seria categoricamente por misericórdia, mas por lhe ter reconhecido autênticas habilidades de génio. Tal episódio aconteceu quando Rodin, contemplou a escultura que representa a neta da 3º duquesa de Palmela aos 8 anos de idade, “A filha dos Condes de Almedina”. Esta obra datada de 1881, e que hoje faz parte do acervo do Museu Nacional Soares dos Reis (Invº nº 17419 T C) mostra-nos um labor rigoroso em torno dos cabelos, do rosto e das vestes requintadas, que comprovam a qualidade e a sensibilidade do artista. Na verdade, a qualidade e a beleza das suas obras são inegáveis, assim como o talento ímpar de retratar para além do que é percetível, delineando na sua obra a personalidade dos vultos que reproduz. Assim, quem chega ao Museu Soares dos Reis e admira “O Desterrado” quase espera que ele se erga do rochedo em que está sentado a refletir e siga o seu percurso. Em relação à obra que representa o Conde de Ferreira supomos que baixe e estenda a sua a mão para nos cumprimentar, e o “Abandonado” consagra-nos a vontade de o segurar e transportar connosco. Por fim, ao contemplar a obra que agora se apresenta – “o Artista na Infância” – ficamos envoltos na ternura de uma criança inocente, mas ao mesmo tempo reguila, que segura um lápis e rabisca os primeiros desenhos. Só isto devia bastar para que merecesse ser lembrado e apreciado, mas o seu lado de escultor era um dos muitos que possuía e que faziam dele um personagem extraordinário.

“O artista na infância”

Foi com a obra “O Desterrado” (datado de 1872) que o autor se estreou verdadeiramente na sua actividade artística, mas foi com o projecto da estátua que agora trazemos a leilão, que se lançou no mercado de arte nacional. Para esta produção executou uma série de esboços (a maioria pertencente ao acervo do Museu Nacional Soares dos Reis) onde se vê que o artista ensaiou a figura da criança em diversas orientações (de pé encostado a um tronco, a lançar água de um jarro e sentado em atitude de quem desenha) até conseguir a representação de um rapaz sentado no chão e inclinado sobre si mesmo. Sucederam-se mais dois ensaios em que a figura surge sentada sob um bloco de pedra (num a segurar um pássaro, no outro a segurar num lápis e a rabiscar ao acaso um bloco). É este último que prevalece num estudo final, que faz parte de uma colecção privada, no gesso que encontramos na Casa-Museu Dr. José Relvas em Alpiarça, e no mármore final. Esta escultura terá custado 600 mil réis, valor mencionado numa carta datada de Novembro de 1879 intitulada AUTOBIOGRAPHIA, escrita pelo punho do próprio escultor em resposta ao questionário que o crítico de arte e seu grande amigo Joaquim de Vasconcelos lhe havia enviado nesse mesmo ano. Tal documento esteve inédito por cerca de 25 anos só em Fevereiro de 1905 é que foi publicada com o título “Aos amigos de Soares dos Reis” em A Revista. Análise descritiva: Esta criança é representada sentada num degrau ou numa pedra que simultaneamente serve de mesa para o esboço que rabisca. Com a cabeça inclinada sobre o ombro esquerdo, os braços direcionados para a esquerda, as pernas cruzadas à direita, segue um esquema de composição cujo ritmo é idêntico ao que encontramos na obra de 1872, “O Desterrado”.
O tratamento do corpo lembra o dos nus da Antiguidade, mas esta obra apresenta outros aspetos formais e conceptuais, que carregam inexplicáveis emoções, característica próxima ao espírito romântico do séc. XIX. Por exemplo, o rosto e o cabelo são profundamente naturalistas, e ao penderem por efeito da intensificação da torção de cabeça, criam uma tensão formal que é compensada pela expressividade da mão direita. Ao mesmo tempo, esse inclinar da cabeça à esquerda, contrabalança o peso aplicado na ponta do lápis com que a criança desenha. Há aqui uma absorção da figura na sua actividade e uma transparência ao nível da fisionomia, que remete para uma multiplicidade de expressões e sentimentos espantosos, mas com um cunho profundamente genuíno. O seu sorriso é semelhante, no ponto de vista formal e emotivo com as clássicas representações de faunos e sátiros (cujas expressões são caracterizadas pela malícia). Na verdade, é em grande parte devido à expressão indefinível do sorriso do jovem artista, situado entre o atrevimento e a satisfação, que se fica a dever o efeito enigmático da representação e o seu carácter excepcional. Exposições/Exibithion: As Belas-artes do romantismo em Portugal, Museu Nacional Soares dos Reis, Porto, 1999/2000

TIAGO FRANCO RODRIGUES

Exposição: As Belas-artes do romantismo em Portugal, Museu Nacional Soares dos Reis, Porto, 1999/2000

Proveniência: Colecção da 3.ª Duquesa de Palmela

Bibliografia: AA. VV. – As Belas-artes do romantismo em Portugal, Museu Nacional Soares dos Reis, Porto, 1999 José Augusto França – A Arte em Portugal no Século XIX. 2a ed. Lisboa: Bertrand, 1981. Vol. I e II. O Occidente, No 19. Lisboa: 1878 O Ocidente, Vol. XII. Lisboa: 1889 Sónia Margarida Serra Queiroga – Casa oficina do escultor António Soares dos Reis, 1847-1889: reavilitação de uma memória e reabilitação de um espaço, Tese de mestrado em História Regional e Local, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2012



Leilão Terminado