Leilão 35 Antiguidades e Obras de Arte, Pratas e Jóias

318

Fiandeira com aves

Morgado de Setubal Attrib. (1752-1809)


Estimativa

22.000 - 30.000


Sessão 2

7 Outubro 2014



Descrição

Óleo sobre tela

128x96 cm


Categoria

Pintura


Informação Adicional

A Fiadeira é uma típica composição saída da oficina do Morgado de Setúbal. Vários aspectos concorrem para esta afirmação. Desde logo, a composição e deficiências perspécticas bem evidentes na figura atarracada e na grande bacia de cobre que se vê em primeiro plano. Depois, na hilariante incongruência da colocação de vários elementos que aqui se juntam. O que faz uma fiadeira, com pés que parecem mãos, sentada ao lado de uma bacia de cobre onde pousam pombas e debicam galinhas do mato, tudo sob os olhares atentos de um imponente peru e de um galo? Parece que a senhora fia o seu alvo linho numa capoeira. Haverá lugar mais impróprio para este género de trabalho? Eis senão quando uma borboleta entra por uma fenestração trazendo consigo a frescura de uma paisagem edílica que ocupa a parte direita da cena. No mínimo esboçamos um sorriso. É tão agradável a cor quanto não o é a face da mulher cujas marcadas rugas deixam perceber a passagem do tempo. É este desconcerto, esta perturbação evidente e consciente, esta desconstrução das convenções que tornam especial a figura do Morgado de Setúbal. Ele não quer, nem sabe, seguir os cânones académicos, como não era coerente a sociedade em que vivia.
O Morgado de Setúbal é das mais curiosas e interessantes figuras da história da pintura portuguesa. Não pelo carácter académico e qualidade técnica da execução das suas pinturas que, como se pode constatar por esta e pelo corpus da sua vasta obra, é verdadeiramente incorrecta. Há no seu trabalho, no entanto, um verismo de representação, um realismo tal que impossibilitam o observador manter-se indiferente. Diga-se que este realismo sem filtros deixa transparecer quer a personalidade do artista,quer ainda, através dele, as ansiedades da sociedade em que viveu. Servem assim as suas obras de testemunho de uma época onde estavam já latentes as convulsões que a sociedade portuguesa iria em breve sofrer. As suas composições são desconcertantes, entre os aspectos trágicos e o humor hilariante, num bipolarismo que tanto poderia ser o resultado de um desequilíbrio interno como externo a este criador.
O Morgado viveu no momento exacto do estertor do Antigo Regime, num Portugal governado por uma rainha em vias de enlouquecer, policiado por um ministro maníaco e por um príncipe de débil compleição física e mental, ensombrado por uma mulher de forte e terrível personalidade que havia de levar o país à guerra civil. Enfim, numa sociedade onde estavam reunidos todos os ingredientes, com respectivo cenário, para uma tragédia com laivos de comédia que observado no nosso ponto de vista nos poderá levar tão rapidamente à gargalhada como à mais profunda consternação.
Para esta época só existe em Portugal outro criador artístico que podemos colocar em paralelo com o Morgado, na observação e leitura desta sociedade e das suas contradições. Trata-se de outro setubalense, um dos maiores poetas nacionais, Manuel Maria Barbosa do Bocage. Quem sabe se os dois não trocaram opiniões, ou mesmo travaram amizade, já que os seus universos se cruzam tanto em termos geográficos como poético-criativos. Há, com toda a certeza, no desconcerto das composições do Morgado um lado poético, satírico e anedótico muitas vezes, trágico noutros casos e nisto nada se distinguindo de Bocage.
Poderemos encontrar explicações para todo este descomedimento no próprio percurso de vida do Morgado. José António Benedito
Soares de Faria e Barros era, como o seu nome deixa perceber, de origem nobre mas a longevidade de seu pai fez tardar o momento em que ele deveria herdar, quer o título, quer a fortuna da família, deixando-o assim com o eterno epíteto de morgado. A verdade é que o pintor irá gozar dos privilégios de bem-aventurança durante parcos cinco anos, pois seu pai morreu em mil oitocentos e quatro e ele em nove. Até nisto a vida do Morgado parece imitar a sua obra. Algo de trágico e cómico se poderá ler neste destino.
Nascido em Mafra, ele aventurar-se-á pelo país aproveitando as oportunidades de trabalho oferecidas por alguns aristocratas do círculo familiar, bem como superando as carências financeiras com as lições de pintura que dava às senhoras da sociedade. Fixou- se em Setúbal que, vá-se lá saber porquê, neste período serviu de incubadora a várias personalidades de génios tempestuosos como Bocage, o Morgado ou ainda outro pintor, Francisco de Setúbal que ganhou a alcunha do Francisco Mau Génio.
O Morgado criou e repetiu variadíssimos modelos que iam do retrato à paisagem, mas foi nas naturezas mortas que mais se destacou, pois era com elas que deveria satisfazer melhor a sua clientela. Não tinha naturalmente pejo em colocar nestas composições elementos contraditórios segundo os desejos dos seus comitentes. Tal como nesta fiandeira em que se juntam diversos elementos, aparentemente sem coerência, um peru poderia perfeitamente conviver com uma rica couve portuguesa e uma mãe, em cenário palaciano, poderá estar a engomar com um fogareiro de sardinhas a seus pés ao mesmo tempo que chuta para o lado o impertinente filho. No entanto, não se pense que este tipo de pintura de alguma ingenuidade compositiva e deficiente perspectiva que denuncia o seu autodidactismo seja caso único no mundo. De facto, ele terá de ser aproximada de casos coevos como as pinturas dos norte- americanos chamados Limmers que têm altíssima cotação no mercado local.
Está ainda por fazer um estudo da vida e obra do Morgado de Setúbal para que este pintor do final do Antigo Regime português seja colocado no lugar que lhe é devido, quer no panorama nacional, quer no internacional.
Anísio Franco
Fiadeira, pintura a óleo sobre tela, séc. XVIII Atribuída ao pintor MORGADO DE SETÚBAL.
A pintura deste artista caracteriza-se pela utilização de figuras populares de uma maneira geral e na lide das suas tarefas (assim temos na sua obra, a lavadeira a lavar, a cozinheira na confecção do caldo verde, assando castanhas, etc.).
Normalmente também os personagens são de trabalhadores modestos, com marcas de uso e remendos nos seus trajes.
Quase como se fosse uma assinatura, é a inclusão de aves de capoeira nas suas composições, e nestas o peru aparece com grande frequência. Neste caso com um tratamento idêntico de pincelada, de pormenor e cromatismo. Assim penso ser de sua mão esta obra.
João Teixeira Abril 2009



Leilão Terminado