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Conversão do Rei Tótila por São Bento em Monte Cassino
Diogo Teixeira – António da Costa (n. c. 1590)
Estimativa
35.000 - 50.000
Sessão 1
22 Maio 2018
Valor de Martelo
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Óleo sobre madeira
200x100 cm
Categoria
Pintura
Dissertação sobre a Obra
Por Vítor Serrão
Historiador de Arte
Centro ARTIS-Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Esta grande pintura maneirista portuguesa, desde sempre atribuída à «Escola de Rafael», vem já referenciada (com outra procedente do mesmo desmantelado retábulo) no leilão da colecção de João Marcelino Arroyo que decorreu em Lisboa em Novembro de 1905. Nesse famoso acervo, entre mil e sete lotes, leiloados pela firma de José dos Santos Libório, constavam duas pinturas sobre madeira, de grande formato, atribuídas a Rafael Sanzio (1483-1520), um dos nomes mais célebres e de maior alto valor de mercado de toda a pintura italiana do Renascimento. Vêm descritas e reproduzidas, com tal atribuição, no catálogo de venda: Lote 562: “Um grande quadro italiano, A apresentação do menino Jesus, escola de Raphael (primeiro período). Moldura em madeira pintada e dourada. Alt. 210cm x Larg. 90cm.”. Lote 563: “Um grande quadro italiano, histórico e religioso, escola de Raphael (primeiro período) moldura em madeira pintada e dourada. Alt. 200cm x Larg. 96cm.” Vendidos por alto preço (180$000 no caso do painel que agora se expõe) a um intermediário da firma leiloeira José dos Santos Libório, passaram depois por diversas propriedades, mantendo na tabela tal vinculção ao nome e escola de Rafael. Tivemos oportunidade de localizar a primeira destas tábuas numa residência do concelho de Palmela, em mau estado de conservação. Mostrou-se então à evidência que não podia tratar-se de obra de Rafael Sanzio, muito menos da sua primeira fase urbinesca (cerca de 1500-1505), e sim pintura portuguesa com características do final dessa mesma centúria. Essa Apresentação do Menino no Templo, tal como a Conversão de Tótila que agora se apresenta, atesta características reconhecíveis de estilo: são da oficina de Diogo Teixeira (c. 1540-1612), o pintor da casa de D. António, Prior do Crato que se tornou um dos mais operosos artistas lisboetas na viragem do século XVI para o XVII, responsável por com obra vasta, sempre fiel às mesmas receitas. Em bom estado de conservação, a segunda tábua do Leilão Arroyo é peça de museu! Representa a Conversão do Rei Godo Tótila por São Bento em Monte Cassino, milagre ocorrido cerca de 530, quando São Bento, recebeu as tropas de Tótila, rei dos ostrogodos (que morre por volta de 547), convertendo-o e às suas hostes. A pintura é, tal como a da citada casa do concelho de Palmela, obra típica de Diogo Teixeira e da sua oficina. Ambos formavam parte de um grande retábulo da capela-mor de um extinto convento beneditino, formado por vários painéis com cenas da vida da Virgem Maria e de milagres do santo. Quem sabe se não seria mesmo o mosteiro de São Bento da Saúde (hoje sede da Assembleia da República), que recebia obras importantes de decoração no final do século XVI (existe um relato do escultor flamengo Estácio Matias, nessa época, em que alude justamente a decorações retabulares que lá se faziam)... Mas também é possível que se tratasse do mosteiro de Santa Maria de Pombeiro (Felgueiras), para onde Diogo Teixeira trabalhou (à data da sua actividade no Porto e em Arouca, em 1591-1597), e onde deixou obras oficinais, restauradas há alguns anos pela empresa Ocre. Não é possível, para já, saber-se a procedência. Certo é que estes dois Diogos Teixeiras passaram nos mercados de arte por obras de Rafael de Urbino (ainda por cima como da mais obscura primeira fase peruginesca...) e assim correram de colecção em colecção, ao longo do século XX... Tratando-se de tema raro da iconografia beneditina (mereceu estudo ao Prof. Flávio Gonçalves, e só se conhecem representações em azulejos setecentistas), o milagre de Tótila inspirase numa das gravuras de Bernardino Passeri (pintor e gravador activo em Roma, cerca de 1576-1585) na obra Vita et miracula sanctissimi patris Benedicti (Roma, 1579). Passeri, que também fez cinquenta desenhos para as gravuras de Aliprando Caprioli que ilustram a obra Speculum et exemplum christicolarum. Vita Beatissimi Patris Benedicti de Ângelo Sangrino (Florença, 1586), criou a base iconográfica que inspirou Diogo Teixeira e vai ser doravante seguida na imagética beneditina maneirista e barroca por toda a Europa, e no mundo colonial. A oficina de Diogo Teixeira, que seguiu a referida estampa de Passeri na composição do quadro (e bastava a evidência dessa fonte iconográfica de fim do século XVI, só por si, para refutar a atribuição tradicional...), atingiu nesta peça um nível alto de execução, dentro das convenções iconográficas impostas e dos repertórios formais que eram os dominantes na fase do Maneirismo contra-reformista. Tudo atesta as inconfundíveis características de estilo de Diogo Teixeira, ainda que com colaboração do seu genro e discípulo António da Costa (c. 1560-1623). Ambos tinham estado envolvidos em parceria, em data próxima, na execução das tábuas do retábulo da igreja da Misericórdia de Alcochete (1586-1588). A Conversão de Tótila é fruto da colaboração desses dois artistas: como já afirmava Adriano de Gusmão, António da Costa colaborou amiúde com o seu sogro e mestre, satisfazendo encomendas em regime de estrita colaboração, tal como se veio aliás a documentar abundantemente, e as tábuas Arroyo bem atestam. Sabe-se que João Marcelino Arroyo (1868-1930), que foi parlamentar distinto, ministro do Reino, e músico de talento, frequentava os leilões das colecções aristocráticas de Lisboa no fim do século XIX: pode ter adquirido os quadros (como de Rafael) num desses acervos desmantelados. Só se apura, porém, que foram seus até 1905, desconhecendo-se os seus ulteriores possuidores.
Bibliografia:
Catalogue Collection J. Arroyo, Vente d’objets d’art et de mobilier ancien, Lisbonne – 2, Rue de Santo António dos Capuchos, imprimerie d’A Editora, 1905, pp. 104-105.
Adriano de Gusmão, Diogo Teixeira e seus colaboradores, Lisboa, 1955.
Vitor Serrão (coord.), A Pintura Maneirista em Portugal – arte no tempo de Camões, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, CCB, 1995, pp. 473-474.
Vitor Serrão e José Meco, Palmela Histórico-Artística. Um Inventário do Património Artístico Concelhio, Câmara Municipal de Palmela, 2007, p. 435.
Teresa de Sande e Lemos, O leilão da coleção Arroyo e o Mercado de Arte em Portugal no final da Monarquia, tese de Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2014.
Leilão Terminado