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Cena de interior com grupo familiar da Casa dos Marqueses de Pombal
Nicolas Louis Albert Delerive Attrib. (1755-1818)
Estimativa
10.000 - 20.000
Sessão 2
28 Maio 2024
Valor de Martelo
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Aguarela sobre papel
C. 1792-1794
(pequenos defeitos)
60,5x47 cm
Categoria
Pintura
NOTA SOBRE O LOTE
Embora desprovida de assinatura ou data, fica clara a filiação desta pintura a aguarela opaca de grandes dimensões, muito bem acabada e de qualidade miniatural, à tradição retratística francesa na transição para o neoclassicismo. Vários são os artistas franceses que, atraídos pelos alardes de riqueza da corte portuguesa, em particular desde o reinado de D. João V (1706-1750), aqui se estabelecem durante todo o século XVIII. Desde logo Pierre-Antoine Quillard (ca. 1703-1733), retratista régio, mas também Jean-Baptiste Robillon (1704-1782), arquitecto e paisagista, e talvez o mais famoso pintor-decorador francês no Portugal da segunda metade de Setecentos, Jean-Baptiste Pillement (1728-1808). Dos artistas franceses contemporâneos da passagem de Pillement por Portugal, destacam-se o paisagista Alexandre Jean Noël (1752-1843) e Nicolas- Louis Albert Delerive (1755-1818).
Uma comparação, mesmo que superficial, entre o nosso Retrato da Família do 2.o Marquês de Pombal e o retrato pintado por Delerive da família O’Crowley, feito em Cádiz por volta de 1797, não deixa dúvidas sobre a autoria da nossa excepcional pintura. Não apenas encontramos o mesmo tipo de composição geral, como que um instante fugaz de uma cena familiar e quotidiana, idênticas poses e gestualidade das figuras representadas (incluindo servidores trazendo correspondência), como também o mesmo posicionamento baixo da linha de horizonte, resultando numa visão plongée sob os retratados e uma perspectiva forçada da estereotomia pavimentar, muito característica e individual. Vemos também a mesma atenção à cultura material e objectos com que as duas famílias escolheram fazer-se representar e, claro, a mesma vontade de vincar o aggiornamento estético, numa mesma transição do rocaille para a austeridade neoclássica. Encontramos, por fim, a mesma qualidade plástica na modelação das fisionomias e carnações (muito vincadas), no tratamento do vestuário, através da representação das diferentes texturas têxteis, e idêntico cuidado extremo à figuração das jóias e demais acessórios. Refira-se semelhante atenção dada a elementos de decoração interior dos planos fundeiros, caso do conjunto figurativo em porcelana biscuit no retrato da família Pombal, e as figuras cerâmicas chinesas e o relógio no retrato da família O’Crowley. Ao contrário da nossa composição, o retrato dos O’Crowley está assinado. Outrora em colecção particular de Madrid, conhece-se apenas através de duas fotografias, uma no Institut d’Art Hispànic de Barcelona (inv. G-38198) e outra, fotografia da Casa Moreno datável do período da Guerra Civil Espanhola, pertencente à Fototeca del Patrimonio Histórico, Archivo Información Artística - Junta Tesoro (inv. AJP-0151). Infelizmente perdido, o retrato a óleo dos O’Crowley, onde pontua a figura de Pedro Alonso O’Crowley O’Donnel (1740-1817), antiquário e comerciante de ascendência irlandesa estabelecido em Cádiz, é um importante testemunho da clientela abastada de Delerive no seu curto período espanhol - veja-se Antón Solé 1966; e Millán Fuentes 2016, pp. 52-54.
Nascido em Lille a 22 de Março de 1755 e de ascendência espanhola, Delerive formou-se com o retratista e miniaturista alemão Johann Julius Heinsius (1740-1812) - para a biografia do nosso pintor, veja-se Saldanha 2016. Em 1776 abandona a cidade natal e ruma primeiro a Artois, onde trabalha durante dois anos para os Condes de Neuville. Estabelece-se como pintor de paisagens, batalhas, bambochatas e pintura de costumes, muito em voga nesse período. Em 1778 muda-se para Paris, prosseguindo aí a sua formação com o italiano Francesco Giuseppe Casanova (1727-1803), onde permanece até à revolução. Datará já do período parisiense de um retrato de casal não identificado, pintura sobre tela (121,0 x 94,0 cm) assinada e datada de 1778, vendida na Christie’s em Junho de 1999 e, mais recentemente, em 2016 e também ela, uma composição em tudo semelhante à nossa pintura (posturas, modelação dos rostos, e vista plongée do pavimento). Em busca de novos patronos, já que a sua clientela se havia exilado ou mesmo morrido durante a revolução, Delerive chega a Lisboa em 1792 onde permanece até 1797, rumando novamente a Espanha, onde havia estado antes, de 1790 a 1792. Nos anos que esteve no reino vizinho, retratou a corpo inteiro o Duque do Infantado e a Marquesa de Santa Cruz. Regressou à corte lisboeta por volta de 1800, cidade onde morre em Junho de 1818. É deste segundo período em Portugal que Delerive, aportuguesado como Nicolau Luis Alberto Delariva, grangeia maior notoriedade entre as elites do reino. Sobrevivem diversos retratos da família real da sua autoria, como um de meio corpo do Príncipe Regente, o futuro rei D. João VI (1767- 1826), a óleo sobre tela pintado por volta de 1803, onde vemos o mesmo rigor e cuidado na representação das jóias honoríficas do retratado (Palácio Nacional de Queluz, inv. PNQ 249A). Ou um outro do mesmo rei, mas a corpo inteiro sentado num fauteil ainda rocaille, pintado em 1805 (Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa, inv. 59167) - veja- se França 1999, p. 143; e Saldanha 2016, p. 24. O mais extraordinário destes retratos é, sem dúvida, o Retrato Equestre de D. João VI, de ca. 1805 (Palácio Nacional da Ajuda, inv. 487). Nesta pintura monumental (306,0 x 246,0 cm) notamos o mesmo tipo de modelação vincada das carnações tal como encontramos no nosso retrato colectivo a aguarela e, claro, a mesma capacidade de representar fielmente os tecidos e todas as jóias que conferem dignidade ao retratado. Neste período, Delerive participa na decoração do Picadeiro Régio de Belém, trabalhando também para a alta sociedade como pintor, restaurador e marchand de pintura antiga. De grande interesse para a história da cidade de Lisboa, da sua vida social e costumes, refira-se a pintura Feira da Ladra na Praça da Alegria, óleo sobre tela pintado por volta de 1810 (Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, inv. 1700 Pint). Delerive deixou-nos ampla evidência do seu interesse pela cidade e suas gentes, como testemunham alguns estudos rápidos, desenhos e aguarelas de touche veloz, preservados em álbuns no Museu de Lisboa e no Museu Nacional de Arte Antiga - veja-se Saldanha 2016, pp. 22 e ss.
Com base na biografia de Delarive, o nosso Retrato da Família do 2.o Marquês de Pombal datará de ca. 1792-1794, coincidindo com a datação proposta por Lourenço Correia de Matos quanto à identificação dos retratados e suas idades. Trata-se de um importante, e até agora desconhecido, testemunho não apenas dos primeiros anos de actividade de Delerive em Portugal, recém-chegado da Paris pós- revolucionária, como do alto patrocínio que soube desde logo colher junto à mais alta nobreza do reino. A nossa composição é também um testemunho eloquente do tipo de famílias aristocráticas do Ancien Régime que Delerive havia retratado em França, da sua clientela mais endinheirada e culta, e da transição estética, mas também social e cultural, primeiro para o Neoclassicismo e depois para a modernidade oitocentista e o dealbar do Proto-Romantismo do qual foi arauto em Portugal.
BIBLIOGRAFIA:
Pablo Antón Solé, “El anticuario gaditano Pedro Alonso O’Crouley”, Archivo hispalense, 136 (1966), pp. 151-166; José Augusto França (ed.), D. João VI e o seu tempo (cat,), Lisboa Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1999; José María Millán Fuentes, De Irlanda a Cádiz. Un viaje entre dos orillas (dissertação de licenciatura), Universidad de Málaga, 2016; Nuno Saldanha, “Nicolas-Louis Albert Delerive (1755-1818). A ascensão da Pintura de Género na génese do Proto-Romantismo, Artis, 4 (2016), pp. 18-27
HUGO MIGUEL CRESPO
Centro de História, Universidade de Lisboa
QUADRO DE CENA FAMILIAR – MARQUESES DE POMBAL (FINAIS DO SÉC. XVIII)
O quadro retrata uma cena familiar, composta de nove personagens, sendo duas senhoras e sete homens, e ainda um cão. As armas dos Carvalhos, encimadas por coronel de marquês, na moldura do quadro, assim como a representação, em retrato a óleo, do 1.o marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), remeteu-nos para a família deste estadista. Não estando presente na cena, certamente por já ter morrido, não deixou de ser exibido como figura tutelar da família. O mesmo viria a acontecer, anos mais tarde, num retrato do 2.o marquês, Henrique José, pintado por Domenico Pellegrini, onde Sebastião José figurou representado num busto que o filho indica com a mão (Fundação Calouste Gulbenkian).
Pela época, tratar-se-ão de alguns filhos e genros do referido primeiro-ministro do rei D. José, e de sua segunda mulher D. Leonor Ernestina de Daun (1731-1789), retratados, cremos, entre 1789 e 1797, como tentaremos demonstrar.
As duas figuras nas extremidades da tela são criados da casa, sendo que o da direita será mais importante pela riqueza do traje, no qual merece destaque o pormenor heráldico da representação das armas dos Carvalhos no debrum, manga, canhões da manga e bolso da casaca. Não sendo possível identificar os referidos serviçais, não deixamos de assinalar o nome de três criados da casa que acompanharam os 2.os marqueses na viagem pelo estrangeiro (1782- 1786), que seriam certamente da maior confiança e poderão estar entre os representados: João Miguel Adeodat Brion, Adrião José Lalonda e José Rodrigues.
A primeira figura – da esquerda para a direita do observador –, a mais destacada do quadro e a única de frente e de corpo inteiro, que se representa encostado e com o braço apoiado na lareira, é o 2.o marquês de Pombal, Henrique José de Carvalho e Melo (1748-1812), filho do 1.o titular. Além do hábito (ao pescoço), ricamente representado com pedraria branca, provavelmente diamantes, e da placa da Ordem de Cristo – de que era cavaleiro desde 1767 e comendador desde 1783, após a morte do pai – tem, no bolso direito da casaca, a chave de camarista, como gentil-homem da câmara, função que desempenhava já em 1768 junto do infante D. Pedro (futuro rei consorte D. Pedro III) e, pelo menos desde 1782, da própria rainha D. Maria I.
A segunda figura, muito próximo do 2.o marquês, trata-se de um eclesiástico. Sabemos que quando da viagem pela Europa entre 1782 e 1786, os 2.os marqueses fizeram-se acompanhar, além de três criados e uma criada, de António Álvares de Avelar Azevedo, presbítero secular e seu secretário, pelo que poderá ser este o sacerdote representado na cena familiar, mostrando um documento ao chefe da família.
De seguida, continuando nos homens, encontra-se D. Cristóvão Manoel de Vilhena (1720-1797), marido de D. Maria Francisca Xavier Eva Anselma de Daun (1751-1816), filha do 1.o marquês. Aparentando ser consideravelmente mais velho que os restantes 2 varões retratados, identificamo-lo pela insígnia que tem ao pescoço, da Ordem do Hospital de São João de Jerusalém, dita de Malta, na qual era comendador de Rossas – a família Manoel de Vilhena estava muito vinculada a esta Ordem: D. Cristóvão era filho e irmão de cavaleiros, e sobrinho neto do grão-mestre D. António Manoel de Vilhena.
Ao lado de D. Cristóvão, num plano ligeiramente inferior, com o braço apoiado na cadeira onde se encontra sentada uma das senhoras, figura João Vicente de Saldanha Oliveira e Sousa (1746-1804), futuro conde de Rio Maior, marido de outra filha do 1.o marquês de Pombal, D. Maria Amália de Carvalho e Daun (1756-1812). À semelhança do cunhado Henrique, foi representado com a placa e hábito da Ordem de Cristo, sendo este figurado numa jóia consideravelmente menos rica que a usada pelo chefe da casa Pombal, e pendente de uma fita mais estreita. Era cavaleiro desta Ordem desde 1769, herdando nesse mesmo ano as comendas da sua casa por morte do pai. O destaque que lhe é dado, em relação aos cunhados D. Cristóvão e José Francisco, pode justificar-se pela relação muito próxima que tinha com o 2.o marquês.
Por último, aparentando menor destaque, José Francisco Xavier Maria de Carvalho Melo e Daun (1753-1821), 1.o conde da Redinha desde 1776 e que viria a ser 3.o marquês de Pombal por morte, sem geração legítima, do irmão Henrique, 2.o marquês. Não é representado com qualquer insígnia, que efectivamente não tinha pois só viria ser cavaleiro da Ordem de Cristo em 1803. As relações com o irmão primogénito não terão sido sempre fáceis, o que explicará a sua relativa subalternização neste retrato familiar.
Sentadas, acreditamos tratar-se de duas filhas do 1.o marquês, D. Maria Francisca Xavier Eva Anselma de Daun (1751-1816), mulher de D. Cristóvão, e D. Maria Amália de Carvalho e Daun (1756-1812), mulher de João Vicente de Saldanha. A primeira aparenta ser mais velha que a segunda e numa postura tutelar sobre a irmã, a quem dá a mão. Este gesto leva-nos a supor não serem as mulheres do 2.o marquês de Pombal e do 1.o conde da Redinha, concunhadas uma da outra. Ausentes deste retrato de família ficaram os condes de São Paio, a primogénita do todo-poderoso Sebastião José, D. Teresa Violante Eva Judite de Daun (1746-1823), e seu marido António de São Paio Melo e Castro Moniz Torres de Lusignan (1720-1803). Da idade do cunhado D. Cristóvão, São Paio não é, pois, compatível com qualquer das outras figuras representadas. Esta ausência poderá explicar-se com o afastamento do casal da corte, pois entre 1777 e 1788 viveram em Trás-os-Montes, província de que ele foi governador das armas, e nesta última data foi nomeado governador da Torre do Outão, em Setúbal. Atendendo à identificação das personagens, podemos tentar datar o quadro com base em alguns elementos que passamos a expor: a) o 2.o marquês já se encontrava em Portugal, sendo, portanto, posterior a Fevereiro de 1786; b) não se encontra representada a marquesa viúva de Pombal, que morrera nos primeiros dias de 1789, e que admitimos pudesse, embora não sendo forçoso, estar representada numa cena familiar com estas 3 características; c) o uso de placas da Ordem de Cristo pelo 2.o marquês e por João Vicente de Saldanha coloca a pintura em data posterior à lei de 19 de Junho de 1789 que reformou as Ordens Militares e introduziu este novo elemento para a dignidade de comendador; d) ainda vivia D. Cristóvão Manoel de Vilhena, que morreria em 1797; embora sendo a figura mais velha representada – nascera em 1720 –, não aparenta ter mais que 70 anos; e) nenhum dos restantes retratados aparenta ter 50 anos, sendo que os varões mais velhos, João Vicente de Saldanha e o 2.o marquês, nasceram em 1746 e 1748, respectivamente; f) a presença de elementos decorativos neoclássicos – como os ferros da lareira, a mesa ou a cafeteira – são consentâneos com os últimos anos da década de 80 ou, com mais probabilidade, com a década seguinte. Note-se, no entanto, que a casa tinha uma boa situação financeira e que os 2.os marqueses de Pombal tinham regressado de uma viagem pela Europa, o que nos leva a crer que estivessem a par das modas decorativas que então despontavam.
Assim, admitimos que o quadro datará entre 1789 e 1797, mais próximo provavelmente da primeira data, considerando a jovialidade da maioria dos retratados, que teriam entre trinta e muitos e quarenta e poucos anos.
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