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Harpa sinfónica
Sebastien Erard (n. 1752–1831)
Estimativa
1.000 - 2.000
Sessão 1
14 Abril 2021
Valor de Martelo
Registe-se para aceder à informação.Descrição
Em bétula
Decoração relevada com figuras mitológicas
Placas de metal amarelo gravadas "Sebastian Erard/ Patent no. 4449/ 18 Great Marlborough Street, London" e no lado oposto gravado "Harp and Piano forte Maker in Ordinary to her Majesty and the ROYAL FAMILY"
Com 8 pedais
Inglaterra, séc. XIX
(faltas, defeitos e indício de xilófagos)
Alt.: 171 cm
Categoria
Objectos
Nota Adicional
A HISTÓRIA DA HARPA
Juntamente com a flauta, este é um dos instrumentos musicais mais antigos, e a sua origem pode estar associada aos arcos de caça que, quando roçavam na corda, produziam som. Constituída por uma caixa de ressonância, coluna, pescoço, cordas e por vezes pedais ou alavancas de semitom, as suas origens encontram-se na Suméria onde teve grande importância na vida cultural dos povos da Mesopotâmia, Egipto, Grécia e Israel.
Só no século VI é que o termo “Harpa” é-lhe atribuído. Até então, as civilizações da antiguidade atribuíam-lhe várias designações, como tibuni, quinor, ugabe, sambuca, cinara, nablo, ou trícono, entre outras.
Durante o crescimento do islamismo, viaja do norte da África até Espanha e, ao longo da Idade Média, espalha-se por todo o continente europeu com a fama de instrumento trovadoresco, sendo, mais tarde, adotada como instrumento de orquestra.
Mas, é na França do século XVIII, que começa o seu sucesso. Tal como nos diz Charles-Simon Favart (1710-1792) “La harpe est aujourd’hui l’instrument á la mode; toutes les dames ont la fureur d’em jouer”, ou seja, este era o instrumento musical que todas as Senhoras da nobreza e da alta burguesia tinham de saber tocar, e isso está bem presente em pinturas como a de Jean-Baptiste André Gaurier d’Agoty (1740-1786), datada de 1775, onde a Rainha Maria Antonieta surge a tocar uma harpa para um restrito grupo de cortesãos, e no autorretrato de Rose-Adélaïde Ducreux (1761-1802), em que a pintora e musicóloga se retrata a tocar uma harpa. Este gosto das Senhoras da nobreza e da alta burguesia pela harpa vai perdurar pelo século XIX. Tomemos o exemplo do retrato realizado por Thomas Lawrence no ano de 1801, que encontramos na Royal Collection, onde a esposa do futuro Rei George IV, a então Princesa de Gales, Carolina de Brunsvique, toca uma harpa na presença da sua filha, a jovem princesa Carlota.
Este instrumento era, originalmente, diatónico, ou seja, cada corda, possuía um só som. Mas, em meados do século XVII, fabricantes tiroleses, aplicaram na consola, junto às cordas de maior importância tonal, um certo número de grampos, que quando accionados provocavam a subida de meio tom cromático. No ano de 1720, o fabricante alemão Hochbruckers (1673-1763), orienta este mecanismo para um sistema de pedais, que acaba por facilitar a introdução do mecanismo de grampos e de cavalete móvel, adoptada pelo fabricante Jean-Henri Naderman (1734-1799) – autor da harpa que figurou no nosso leilão passado número 101 em outubro de 2020 – um dos principais fornecedores da corte francesa. De facto, as suas harpas surgem mencionadas como as melhores do seu tempo, tanto a nível de construção como de mecanismo, nas memórias escritas para a Academie des Sciences et Beaux Arts (assinadas por Méhul, Bonec, Charles e Prony, a 17 de Abril de 1805).
Embora tenha conseguido aperfeiçoar o modelo das harpas com pedal de ação simples, foi com o autor da peça que agora trazemos a leilão, que se revolucionou a história da harpa quando, em 1810, patenteou a harpa de dupla acção com a qual passou a ser possível encurtar cada corda em um ou dois semitons, por forma a criar um tom completo.
Este mecanismo, ainda hoje utilizado por fabricantes de harpas de pedal, passou a permitir ao harpista tocar em qualquer tonalidade ou configuração cromática.
Sébastien Erard (1752-1831)
Sébastien Erard (1752-1831), ilustre fabricante francês de instrumentos musicais, dedicado à produção de pianos e de harpas, nasceu em Estrasburgo no dia 5 de abril de 1752, sendo quarto filho do segundo casamento do estofador de origem suíça Louis-Antoine Erard (1685-1758). Quando o seu pai morreu, Sébastien tinha apenas seis anos de idade, pelo que os relatos um tanto romantizados de que as habilidades de marceneiro foram adquiridas na oficina do seu pai não podem ser comprovados. No entanto, sabe-se que cresceu numa comunidade de artesãos qualificados, com tios, primos, o seu padrinho e o seu irmão mais velho, todos empregados como marceneiros, estofadores e douradores, na sua maior parte dedicados à produção de mobiliário para o contexto eclesiástico. Desconhece-se o que o levou a tornar-se num fabricante de instrumentos musicais, nem se sabe onde foi ensinado.
A sua chegada a Paris decorre no ano de 1768, quando tinha dezasseis anos, mas novamente é impossível apurar o relato da sua chegada. No entanto, sabe-se que a duquesa de Villeroy (1731-1816) foi uma das suas primeiras patronas, fornecendo-lhe instalações para uma oficina no hôtel de Villeroy na rue de Bourbon em Paris.
A sua vontade de explorar os fundamentos da fabricação de instrumentos musicais ajuda-o a evidenciar a sua genialidade para encontrar formas de contornar problemas mecânicos, uma habilidade que chama a atenção do Abade Roussier e, aos poucos, o seu sucesso como fabricante de instrumentos musicais atrai-lhe rivais, que muitas vezes o acusam de trabalhar sem licença. É nesta altura que consegue a proteção real por parte do Rei Luís XVI e a licença para produzir por conta própria.
O sucesso que atinge em 1779, quando começa a explorar o novo mercado de fortepianos de cinco oitavas obriga-o a pedir a ajuda do seu irmão mais velho Jean-Baptiste Erard (1749-1826) e juntos mudam-se para o número 109 da rue de Bourbon e depois, em 1781, para o número 13 da rue du Mail, local que em Janeiro de 1791 acabam por adquirir, e que permanece como a sede da empresa até esta fechar no século XX. Através do sucesso que atingiram na década de 80 do século XVIII, produzem fortepianos para a Rainha Maria Antonieta e, de acordo com o London Post Office Directory de 1786, abrem uma loja na Great Marlborough Street, em Londres, os irmãos acabam por formar uma sociedade comercial que, a partir de Janeiro de 1788, passa a operar com o nome comercial Erard frères. Nesse mesmo ano, o registo de vendas mostra-nos uma produção anual de 254 fortepianos, número que quase duplicou, no ano seguinte, registando a produção de 410 fortepianos.
Até este momento desconhece-se a produção de harpas e, quando no início da década de 1790 Sébastian é obrigado a deixar a França revolucionária para se instalar em Londres – de onde regressa pela primeira vez só em 1796 – não há o registo de ter deixado alguma harpa para trás. No entanto, numa carta trocada com o seu irmão, é abordado o problema da harpa, onde observa que ‘o mecanismo é muito complicado’.
Ao mudar-se para Londres entrega a gestão da sucursal de Paris ao seu irmão e, no ano de 1792, abre uma oficina no nº18 da Great Marlborough Street, e é aí que se concentra na fabricação de harpas, até então todas importadas de França. Em Novembro de 1794 regista a primeira patente britânica para uma harpa (Improvements in Pianofortes and Harps, patente nº 2016), um instrumento de ação única afinado em mi bemol que pode ser tocado em oito tons maiores e cinco tons menores, através do engenhoso mecanismo de bifurcação que permite que as cordas sejam encurtadas em semitom. Em Londres a harpa faz um notável sucesso e os livros de gestão de estoque daquela sucursal, mostra-nos que, rapidamente, a aristocracia ficou interessada nestes instrumentos, com as vendas a dispararem a partir de Novembro de 1800 e com Sua Alteza a Princesa de Gales, Carolina de Brunsvique (1768-1821), a pagar o valor de £75 120 pela harpa nº. 357.
No ano de 1807, na sucursal de Londres, uma harpa custava £ 83 700 e, um conjunto de cordas, £ 1 180. Nesse mesmo ano é feito um novo acordo comercial entre os dois irmãos e, no ano seguinte, Sébastian regressa a Londres onde permanece por cinco anos, concentrado no desenvolvimento da harpa. Como afirmado anteriormente, a sua harpa de ação única, apesar de exibir um mecanismo revolucionário, limitava-se a tocar apenas treze tons (Mi bemol, Si bemol, Fá, C, Sol, Ré, Lá e Mi maiores, com três de seus parentes menores).
Apenas em Maio de 1810 (com a patente de Londres nº 3332), conseguiu aperfeiçoar e patentear um mecanismo de dupla ação. Foi uma inovação tão popular que só no mês de Setembro desse ano foram vendidas 1.374 harpas, estando entre os seus clientes nomes como Dussek e Krumpholtz e muitos refugiados franceses. Curiosamente uma dessas harpas pode ser vista no Museum für Kunst und Gewerbe em Hamburgo.
No entanto, em 1813 as restrições comerciais e industriais impostas pelas guerras napoleónicas comprometem a empresa de Paris, e a 26 de Fevereiro de 1813 é declarada falência. Simultaneamente, entre 1811 e até 1820, a sucursal de Londres vende 3.500 dessas harpas, com uma decoração ao gosto grego onde o capitel da coluna apresenta elementos como cariátides aladas (elemento decorativo que perdurará nas décadas seguintes e que podemos observar no exemplo que agora trazemos a leilão), leões alados, grifos, máscaras gregas e folhas de acantos. Os lucros obtidos por estas vendas liquidaram todas as dívidas externas incorridas pela empresa de Paris e, a 12 de Abril de 1824, a falência foi anulada.
Entretanto Sébastian regressa definitivamente a Paris, onde no ano de 1820 adquire parte do Château de la Muette, que manda restaurar e ampliar para alojar a sua adega com 2.047 garrafas de vinho e também a sua rica pinacoteca, com cerca de 260 pinturas de qualidade excepcional. Muitas destas obras estão em colecções museológicas, como é o caso do retrato de Filipe IV do atelier de Velázquez (hoje no museu do Hermitage em São Petersburgo), a "Adoração dos Magos" de Albert Dürer (hoje na Galeria Uffizzi, Florença), o retrato que Rembrandt realizou em 1634 da sua mãe (hoje na National Galleri de Londres), bem como pinturas de Correggio, Murillo, Teniers e Titian.
Foi aqui que a 5 de agosto de 1831, com 79 anos acaba por falecer sendo o sobrinho o herdeiro de todo o seu património.
Pierre-Orphée Erard (1798-1855)
Pierre Erard, é filho de Jean-Baptiste Erard (1749-1826), e nasceu em Paris no dia 10 de março de 1794, em pleno período revolucionário.
A preparação para se encarregar dos negócios da família, leva-o a direccionar os seus estudos para a música e para harpa, bem como para o domínio da língua inglesa. A sua chegada a Londres, a 17 de Maio de 1814, para assumir a direção dos negócios de Londres, corresponde ao ano que sucede à já referida crise que atingiu a sucursal de Paris, mas tal não afeta a sua permanência em Londres, acabando por aí registar uma nova patente da harpa, mais uma vez aperfeiçoada em 1822, e por ganhar uma medalha de ouro na Exposição de Paris de 1824.
Com a crise económica do início de 1830, e com os impostos cobrados sobre os bens herdados em França e em Inglaterra, é obrigado a vender a já referida coleção de pinturas de seu tio e a alugar temporariamente o Château de la Muette ao doutor Guérin, que nele instala uma clínica ortopédica.
Regressa a Paris em 1834, ano em que é nomeado Cavaleiro da Legião de Honra, e a 18 de Junho de 1836, obtém a patente da chamada harpa "gótica". Nesta altura consegue melhorar a situação empresarial, e em 1844 abre novas lojas nos números 3 e 87 da rue Saint-Maur-Popincourt. Anos depois, em 1851, expõe na Feira Mundial de Londres onde os seus pianos são reconhecidos como os melhores, acabando por ser apontado como fornecedor do jovem Príncipe Alberto, o príncipe Consorte da jovem Rainha Victoria.
Em 1838 casa-se com a sua prima em segundo grau Camille Février e volta a habitar o Château de la Muette, onde vive com as suas três tias solteiras, a sua irmã Céleste e o seu cunhado, o compositor Spontini. No ano de 1853 adquire o petite Muette (uma ala do castelo separada pela destruição do corpo central em 1793), e pouco tempo depois começa a sofrer de Alzheimer vindo a falecer a 15 de Agosto de 1855 com demência.
Continuação da Maison Erard, pós 1855
Após a morte de Pierre, o negócio passa para as mãos da sua viúva que escolhe o seu cunhado Antoine Eugène Schaffer (1802-1873) para dirigir a sucursal de Paris, e o Senhor Bruzaud para a sucursal de Londres. Desta última, destaca-se a produção de pianos, nomeadamente o piano dourado encomendado a 30 de Abril de 1856 pela Rainha Victoria e que hoje se encontra na Royal Collection na White Drawing Room do Palácio de Buckingham. A firma de Londres acaba por ser vendida em leilão em Setembro de 1890, sendo grande parte do negócio adquirido por J. George Morley, fabricante de harpas, que continua a produzir harpas, em menor escala, até fechar definitivamente na década de 1930.
Em 1883, é realizado um acordo comercial com Amedé Blondel, e a empresa passa a operar como Erard et Cie e, depois, sobre vários nomes comerciais como Blondel et Cie (Maison Erard), Guichard et Cie (de 1935 a 1956), Erard et Cie S.A. (a partir de 1956), até que acaba por se unir com a Gaveau, passando a produzir com o nome Gaveau-Erard.
Em 1961, funde-se com a sua antiga concorrente, a Pleyel e, em 1971, cessa finalmente a sua atividade e a fabricante alemã de pianos Schimmel compra o direito de uso das diversas marcas. No ano de 1978, as instalações da Salle Gaveau acabam por ser adquiridas pelo harpista Victor Salvi (1920-2015).
Os livros de gestão de estoque da casa Erard
É graças à perspicácia da família Morley, e aos seus descendentes, que hoje temos os livros de gestão de estoque da sucursal de Londres, conhecidos como Erard’s Stock Books, que em Dezembro de 1994, foram adquiridos em leilão pela Royal College of Music de Londres.
Estes livros, que cobrem as actividades da sucursal de Londres entre os anos de 1798 até 1917, período durante o qual foram produzidas 6.862 harpas, também nos dão muita informação e algumas curiosidades sobre esta sucursal, desde a fina clientela, aos valores das peças, bem como os muitos litros de verniz que era utilizado.
Outra informação que nos dá diz respeito aos salários semanais dos trabalhadores, e aos gastos na concepção de equipamentos especializados, dados que nos mostram que a produção da Erard frères correspondia à nova “Era industrial”, sendo a suas oficinas muito diferentes das que até então estavam associadas à fabricação de instrumentos musicais. Ideia que também podemos corroborar com os inventários da sucursal de Paris, que registam para o ano de 1831 oitenta trabalhadores especializados em dezanove oficinas diferentes, sendo dezasseis dedicadas para o piano e apenas três para a harpa, quatro marceneiros, um para montagem e uma para douramento.
Proveniência desta harpa
Segundo os registos do Erard’s Stock Books, guardados na biblioteca do Royal College of Music de Londres, conseguimos perceber que esta harpa foi concebida na oficina de Londres em Abril de 1831 e vendida no dia 28 do mesmo mês a um comerciante de instrumentos musicais de Dublin, Mr Edw. MCCullogh. Através de uma anotação feita posteriormente, ficamos a saber que esta harpa foi vendida em leilão pela Sullivan & Callaghan no ano de 1906.
Bibliografia:
Alain Roudier – Les origines de la famille Erard, in Sébastien Erard, 1752-1831, ou la rencontre avec le pianoforte. Exhibition Catalogue, Luxeuil-les-Bains, 1993;
Anik Devriès – Sébastien Erard, un amateur d’art du début du XIXe siècle, in Sébastien Erard, 1752-1831, ou la rencontre avec le pianoforte. Exhibition Catalogue, Luxeuil-les-Bains, 1993;
Ann Griffiths – A dynasty of Harpmakers, World Harp Congress Review, Spring 2002;
Robert Adelson - The History of the Erard Piano and Harp in Letters and Documents, 1785–1959, Cambridge University Press, 2015;
Wenonah Milton Govea – Nineteenth and twentieth-century harpists: a bio-critical sourcebook. Greenwood Publishing Group, 1995.
A VERITAS Art auctioneers agradece ao Centre Sébastian Erard, em especial ao Professor Robert Adelson do Conservatoire de Nice pela ajuda na recolha da informação desta peça.
Leilão Terminado